O mito da normalidade

O mito da normalidade é o título do primeiro capítulo do livro Illusion and Reality: The Meaning of Anxiety¹, do psicólogo britânico David Smail. O autor, que escreve a partir da sua prática clínica, questiona a noção que temos de que as outras pessoas parecem bem ajustadas e que vivem suas vidas normalmente. Na verdade, todos nós lutamos para tentar criar uma imagem que esteja próxima daquilo que achamos que deveríamos ser e que é bastante baseada nas normas sociais. Tentamos parecer confiáveis, sérios, competentes, seguros, enquanto, ao mesmo tempo, percebemos todas as nossas dificuldades e inseguranças. Com isso, surge uma enorme ansiedade de que seremos descobertos, que os outros percebam que somos uma grande fraude. Segue um trecho do capítulo em questão:

Depois de um tempo, você pode perceber que o mundo particular que você ocupa difere no que diz respeito aos ideais e valores da sociedade de forma mais ampla, ou que você pessoalmente não condiz com o que parece ser valorizado: se você é bobo, deveria ser esperto; se você é pobre, deveria ser rico; se você é feio, deveria ser bonito; se você é solteiro (em uma certa idade), deveria ser casado; se você é tímido, deveria ser confiante; se você é gordo, deveria ser magro; se você é magro, deveria ser forte e assim por diante. Se você falha nesses ou em outros aspectos, o que é inevitável, você encontrará exércitos de profissionais prontos para consertar as imperfeições: psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, educadores, conselheiros religiosos, cirurgiões plásticos, esteticistas, contadores, terapeutas familiares – a lista pode ser estendida indefinidamente. Na maior parte dos casos, os profissionais compartilham de um objetivo comum – fazer com que você se ajuste melhor à sociedade, e não alterar as instituições sociais para que elas abram mais espaço para que você fique confortável. Em outras palavras, quando você falhar, você não encontrará quase ninguém pronto para levar o seu fracasso a sério e nenhuma estrutura conceitual, nenhuma linguagem na qual considerá-lo – você apenas será incentivado a tentar com ainda mais vontade para ter sucesso. Com um pouco de ajuda dos seus conselheiros profissionais, você vai ter que curvar e distorcer ainda mais a sua imagem já surrada para se adequar mais ao que é aceitável.

O autor associa à essa angústia relacionada à imagem que achamos que precisamos ter à visão dos profissionais de saúde e educação que endossam essa perspectiva de perfeição e de que o as dificuldades são doenças a serem tratadas. Com isso, a perspectiva é de que o problema está no indivíduo, que precisa ser consertado, através de terapias, medicamentos, reforços escolares e outras formas de tratamento. Mas pouco se olha para a escola que não consegue lidar com as diferenças entre os alunos, para o ambiente de trabalho desumano, para a cidade com infraestrutura precária. Cada vez mais estamos jogando para dentro do indivíduo – e frequentemente buscando explicações biológicas – questões que só podem ser realmente compreendidas quando se olha para a relação da pessoa com o seu ambiente e com sua história de vida.

Quando se atribui o problema exclusivamente à pessoa, pode-se vender mais terapias, mais medicamentos, mais cirurgias plásticas, mais tratamentos de estética. E, ao mesmo tempo, menor a necessidade de questionar a escola, o assédio moral no trabalho, o custo de vida, as condições sociais. É bastante conveniente para uma série de setores da sociedade. Aos profissionais de saúde, é preciso perguntar-se se nós formaremos esse exército que busca fazer com que as pessoas se conformem – em todos os sentidos – ou se vamos ajudar as pessoas a entenderem porque elas sentem o que sentem e que não há nada de errado com elas. Se escolhermos a segunda alternativa, damos uma chance para que a pessoa questione as suas circunstâncias de vida e possa mudar de forma realmente significativa.

Referência
1. Smail, D. (2015). Illusion and Reality: The Meaning of Anxiety. Londres: Karnac Books.

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