Transtornos da personalidade: diagnósticos e moralismos

Timon Studler

Muito se discute sobre a aplicação do modelo médico na área de saúde mental. Um dos focos de discussão é a forma como são vistos os transtornos: desde “doenças” com causas biológicas para alguns autores como totalmente inexistentes para outros. Como já discutimos aqui, os transtornos mentais são constructos delimitados por um grupo de especialistas e reformulados de tempos em tempos. O próprio fato de os critérios diagnósticos serem revistos periodicamente permite a crítica em relação à sua validade como um todo.

Por outro lado, parece que apenas ao considerar que os transtornos são “doenças” com chancela médica é que se consegue dar ao sofrimento a seriedade necessária para que as pessoas possam obter tratamentos nas esferas pública e privada, afastamentos do trabalho e uma discussão ampla sobre quais aspectos — culturais, biológicos e pessoais — favorecem o surgimento desses quadros.

Talvez o grupo de transtornos que mais depende da cultura são os transtornos de personalidade. O DSM (APA, 2014), catálogo mais utilizado para diagnóstico em saúde mental, descreve os transtornos de personalidade como “um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo” (p. 645).

Vou listar os mais comuns, ainda de acordo com o DSM:

  • Transtorno da personalidade antissocial é um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros.
  • Transtorno da personalidade borderline é um padrão de instabilidade nas relações interpessoais, na autoimagem e nos afetos, com impulsividade acentuada.
  • Transtorno da personalidade histriônica é um padrão de emocionalidade e busca de atenção em excesso.
  • Transtorno da personalidade narcisista é um padrão de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia.
  • Transtorno da personalidade evitativa é um padrão de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade a avaliação negativa.
  • Transtorno da personalidade dependente é um padrão de comportamento submisso e apegado relacionado a uma necessidade excessiva de ser cuidado.

Olhando para essa lista, percebe-se que as descrições se referem a modos de ser. Claro, que podem trazer sofrimento e dificuldades para as pessoas que os apresentam, mas é estranho enxergá-los como algo que pertença à esfera da saúde.

O DSM também diz: “Os traços de personalidade constituem transtornos da personalidade somente quando são inflexíveis e mal-adaptativos e causam prejuízo funcional ou sofrimento subjetivo significativos.” (p. 647) O termo mal-adaptativo é central aqui, pois denota que a pessoa não está bem adaptada ao seu meio. O que me intriga aqui é porque isso é uma questão médica. Se a pessoa não está adaptada, o problema é dela ou do meio? O que é essa adaptação que é vista como desejável? Quem julga o quanto a pessoa deveria estar adaptada ou “funcionando”?

Essas questões me levam a pensar que a avaliação diagnóstica dos transtornos de personalidade não passa de moralismo disfarçado de ciência médica. Assim como os sacerdotes faziam em outros tempos, hoje são os cientistas, os médicos e os profissionais de saúde em geral que dizem como as pessoas devem viver, o que é esperado delas, o que é desejável e adequado. E, claro, quando a pessoa não atende às expectativas, ela é rotulada como “desviada” e um tratamento é prescrito.

Só que, no caso dos transtornos de personalidade, o “tratamento” é uma saia justa até para os médicos. Se em quadros como depressão e ansiedade existem medicamentos já bastante estudados que trazem alívio dos sintomas, não existem pílulas para pessoas que não se adaptam. Algumas vezes, é possível abordar com medicamentos certos traços mais “fisiológicos” desses transtornos, como a impulsividade ou pensamentos obsessivos. Mas não há remédio para o medo de rejeição de alguém com transtorno da personalidade borderline ou transtorno da personalidade evitativa.

A mesma dificuldade também se apresenta para os psicólogos, especialmente se nos propusermos a mudar esses padrões de comportamento. Não existem nenhuma forma de terapia eficaz para “tratar” alguém com transtorno de personalidade antissocial, por exemplo. Lutar contra esses traços é frustrante tanto para o terapeuta como para a pessoa atendida e já vi muitos colegas que — compreensivelmente — fogem do atendimento de pessoas com esse tipo de diagnóstico.

Seria hipocrisia da minha parte dizer que eu nunca trabalho com diagnósticos — ou, mais precisamente, hipóteses diagnósticas — nos meus atendimentos. Existem algumas situações em que falar nesses termos pode ser benéfico para a pessoa. Geralmente são casos em que a pessoa tem a sensação de realmente não se encaixar, de ter dificuldades mais acentuadas em uma determinada área e, consequentemente, muito sofrimento. Quando esse quadro tem a intensidade suficiente para se encaixar com uma hipótese diagnóstica de transtorno de personalidade, por vezes eu comento sobre isso com a pessoa atendida. Explico sobre o quanto um diagnóstico é conceitual e faço todas as ressalvas. Depois disso, lemos os critérios juntos e pergunto o que ela acha.

Em muitos casos, ter contato com essa hipótese diagnóstica traz alívio para a pessoa. Ela acha um “motivo” para as suas dificuldades e entende que não está sozinha no seu padrão de funcionamento. Se antes ela sofria e se paralisava porque percebia em si obstáculos que outras pessoas não tinham, agora ela vê isso como compreensível e, paradoxalmente, passa a agir mais livremente do que antes, sabendo que certas coisas serão mesmo difíceis para ela. Se as coisas seguem bem, ela consegue desenvolver um grau de autoaceitação e autocompaixão que a permitem sofrer menos e até a “funcionar” melhor, ainda que esse não seja o objetivo da intervenção.

Em nenhum momento, na minha prática, falar em diagnóstico se refere a “consertar”, “curar” ou “resolver” os padrões vistos como “mal-adaptativos” da pessoa. Ao contrário, serve para que ela se libere das tentativas de se adequar sem considerar as suas próprias especificidades. Se para a pessoa se aceitar é difícil, ter uma razão “científica” para que ela seja como é pode permitir isso. Mais do que uma verdade, o diagnóstico aqui é uma estratégia. No fim, conforme a pessoa navega melhor pelas suas características e pelos seus contextos, o rótulo do transtorno vai se enfraquecendo, ainda que os traços que o definem continuem lá. Usa-se, então, o diagnóstico para que ele possa ser esquecido.

Felizmente hoje não se tolera mais, a menos que seja para preservar a vida da pessoa e daquelas que a cercam, procedimentos como internações involuntárias, cerceamento de liberdade a existência de manicômios. Mas ainda há um certo resquício dessa lógica na saúde mental, em que alguns diagnósticos parecem se referir a regras de conduta e bom comportamento. Os profissionais de saúde mental devem focar essencialmente no sofrimento da pessoa, no esclarecimento de suas dificuldades, mas não — por mais que isso seja difícil — em ditar como elas devem viver.

Referência

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.

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