
Ao ler um livro sobre psicoterapia, o seguinte trecho me chamou a atenção:
A psicoterapia tradicional vê os “problemas” como muito reais. Uma quantidade enorme de tempo e energia é frequentemente gasta tentando se livrar de emoções que simplesmente passariam, como o clima de um dia, se não as julgássemos um problema a ser resolvido, ou uma declaração sobre um “eu” em vez de um momento. Anos podem ser gastos tentando mudar uma autoimagem negativa para uma positiva sem nunca questionar se uma imagem é realmente quem somos. Os clientes querem se sentir melhor e procuram um terapeuta para efetuar essa mudança. Isso é bom. Mas, embora uma autoimagem positiva possa parecer melhor, ela é tão limitante, falsa e temporária quanto qualquer outra imagem. O que há aqui por baixo da imagem? “O que é realmente verdade?” torna-se uma questão muito mais interessante do que “Como posso manipular a vida, ‘eu, ‘você’ ou ‘eles’ para sentir/ser de uma certa maneira?”
Dorothy S. Hunt, em Listening from the Heart of Silence
O texto me impactou porque o que mais fazemos na psicoterapia é trabalhar com as “declarações sobre o eu” citados pela autora. As queixas iniciais se referem, geralmente a alguma dessas declarações, como: “sou muito ansiosa”, “sou explosivo”, “não me encaixo”, “não consigo trabalhar como deveria”.
Independentemente da abordagem, o passo seguinte geralmente é expandir essas declarações. Seja buscando material da infância, seja dos contextos atuais. Criamos uma narrativa com pressupostos causais sobre essas declarações. Fazemos isso porque acreditamos que essa compreensão nos permitirá mudar essas declarações ou, em outras palavras, ”resolver” o “problema” que a pessoa está nos trazendo. Não é raro que passemos muito tempo – anos, até – simplesmente debatendo essas ideias até montar uma narrativa que pareça suficiente.
Essas narrativas podem ser mais ou menos verdadeiras (no fundo, nunca teremos como saber) e as condutas que derivam delas podem ser mais ou menos eficazes. Às vezes parecem levar a algum tipo de melhora, outras vezes não. Mas o que a autora questiona é que, mesmo quando funcionam, apenas estamos arranhando uma superfície.
Na melhor das hipóteses, teremos algum tipo de mudança que permitirá à pessoa substituir uma declaração não tão boa sobre o eu por uma mais positiva. “Me sinto menos ansiosa”, “tenho me controlado mais” ou algo nessa linha. Mas, o que estamos fazendo, na verdade, é fortalecer uma narrativa subjacente: de que é preciso alcançar uma narrativa “ideal” e que qualquer coisa além disso é um fracasso, é algo que precisa ser resolvido.
Mesmo que eu “melhore”, eu preciso me manter alerta, focado em não escorregar de volta para os velhos “padrões” indesejáveis. A medida em que a narrativa sobre o que sou está distante daquela que acredito que devo ser é a medida do meu sofrimento. Tentar melhorar a narrativa sobre o que somos só acentua essa discrepância, revelando um paradoxo da psicoterapia.
É claro que é preciso validar e dar atenção para essas narrativas. Existem questões práticas e sofrimentos imediatos que podem ser aliviados. Mas ficar apenas nisso é como ir num ótimo restaurante e comer só a entrada. Na minha visão, o trabalho realmente interessante e profundo acontece quando podemos questionar e – quem sabe – até mesmo largar essas declarações sobre si.
“Quem é essa pessoa que se percebe ansiosa? Para que serve essa afirmação? De onde vem a ideia de que você não deveria se sentir ansiosa? Como seriam as coisas se você não tivesse essa declaração sobre si mesma?” são exemplos de perguntas que poderíamos fazer quando queremos ir em uma direção distinta à de simplesmente “resolver” o “problema” da ansiedade.
Abandonar as narrativas sobre nós mesmos parece assustador. Nós as percebemos como os alicerces sobre os quais nos sustentamos, como definidoras do que somos e do que devemos ser. Mas poucas vezes percebemos quão limitantes – ou simplesmente irreais – elas são. Nenhuma narrativa, pois mais completa que seja, é capaz de realmente descrever a magnitude da nossa experiência. E como seria a nossa experiência de vida sem as amarras dessas histórias?
Foto: Dang Tran