A Hospedaria, de Rumi

Existe um poema famoso do filósofo sufista Rumi que é usado para se trabalhar alguns conceitos em terapia com as pessoas atendidas. É chamado de A Hospedaria (traduzindo da versão em inglês, chamada de The Guest House).

A Hospedaria

O ser humano é uma hospedaria.
Toda manhã, uma nova chegada.

Uma alegria, uma depressão, uma maldade,
Alguma consciência momentânea vem
Como uma visitante inesperada.

Receba e entretenha a todos!
Mesmo que sejam uma multidão de tristezas,
Que violentamente varre a sua casa
E a esvazia de seus móveis.
Ainda assim, trate cada hóspede honradamente.
Ele pode estar te limpando
Para um novo deleite.

O pensamento sombrio, a vergonha, a malícia,
Encontre-os à porta rindo,
E os convide para dentro.

Tenha gratidão por quem vier,
Pois cada um foi enviado
Como um guia dos confins.

Rumi (mestre sufi do século XII)

A ideia é que as emoções, pensamentos e estados internos são vistos como visitantes, enquanto a pessoa seria a própria hospedaria — ou o seu gerente. Com isso, conseguimos trabalhar conceitos como desfusão (você não é aquilo que pensa ou sente) e self como contexto (você não é algo sólido e estático, e sim algo como um espaço em que os estados surgem e desaparecem).

Podemos usar metáforas parecidas, como as que comparam o self com um palco em que os personagens entram e saem, ou com um ônibus, em que os passageiros sobem e descem, mas que não controlam a direção para onde o ônibus vai. Essa perspectiva é bastante característica da Terapia de Aceitação e Compromisso, ou ACT.

Entretanto, todo modelo de terapia espera, em última análise, uma mudança. Mesmo na ACT, em que o A é a sigla para aceitação, se prega essa aceitação para que alguma mudança ocorra. Usa-se a disponibilidade em função de um certo direcionamento da vida. Me parece que o poema de Rumi não fala isso.

O poema descreve uma completa rendição. Fala da incontrolabilidade e da imprevisibilidade dos estados internos. A única “atitude” defendida é a de não resistência, de se assistir o desenrolar da vida interna sem nenhum tipo de luta: ao contrário, com abertura e receptividade. Não há um ganho prometido, não se trata de um truque para que depois se tenha controle. Essa aceitação final e total é muito mais profunda do que qualquer modelo de “terapia” pode proporcionar.

Foto: Phil

Não tenho identidade

Foto: Austin Ramsey

Num mundo com oito bilhões de pessoas e extrema conectividade, gostamos de nos sentir únicos e especiais. Por isso, nos definimos a partir de grupos de identidades. Papeis familiares, profissão, origem geográfica, classe social, posição política e religiosa, raça, gênero, preferências musicais e esportivas. Pela importância egóica dessas categorias, não apenas as usamos para nos apresentar no mundo, mas queremos e exigimos que elas sejam reconhecidas e valorizadas. Não raramente, contrapomos nossas identidades frente a outras que vemos como opostas e incompatíveis, em competições por mais importância ou relevância. Podemos direcionar o ódio pelas nossas frustrações de vida para categorias específicas de identidades díspares daquelas em que nos vemos.

Posso elencar uma série de categorias de identidades que seriam aplicáveis a mim: homem, brasileiro, psicólogo, pai, marido, pardo, ex-católico e por aí vai. O curioso é que essas ideias não poderiam significar menos para mim. Mesmo as mais valorizados socialmente, como “pai” ou “profissional de saúde”. E não é que eu não esteja totalmente inserido nesses papeis na prática — é nos conceitos que não me vejo.

Quando estou com meu filho, não me vejo como um “pai”. Me vejo apenas na experiência direta de estar com ele. Quando atendo uma pessoa, não me vejo como “psicólogo”, me vejo apenas na experiência direta de estar com a pessoa. Que dirá então de aspectos mais abstratos e pouco ligados à experiência diária, como raça, religiosidade ou classe social. Tenho consciência do argumento que pode ser usado, de que fazer parte de um ou outro grupo pode aumentar ou reduzir a chance de que certas coisas possam acontecer. Ainda assim, não consigo ver relevância. A vida continua sendo o que é.

Me afastar desses conceitos foi um exercício, que se iniciou com as leituras e práticas budistas. Em especial do Zen, que desconfia tanto de descrições e palavras. E por isso mesmo nunca me vi como budista — seria um contrassenso. Outros autores, mais do que questionar o problema dos conceitos, vão além: apontam para as consequências de sofrimento para a pessoa e a divisão que apegar-se a papeis e identidades traz. Com o tempo, o apego a esses rótulos sociais foi diminuindo, e cada vez mais a relevância do aqui agora sem conceitos foi se fortalecendo.

É claro que no dia a dia é preciso se colocar dentro desses papeis para as burocracias da vida. Sou “pai” quando faço a matrícula do meu filho na escola e “psicólogo” quando emito um recibo de um atendimento. As outras pessoas também vão me colocar dentro desse ou daquele grupo (algo sobre o qual não tenho o menor controle) e talvez me avaliem a partir dessas classificações. Mas, para mim, esses títulos não significam nada. A riqueza das experiências não está nos nomes, do mesmo jeito que não atribuo aos rótulos as causas de eventuais sofrimentos.

Da mesma forma que a ansiedade extrema diz que tudo será melhor quando a vida toda estiver no controle, o apego às identidades diz que tudo será melhor quando ela estiver no topo, reconhecida e, muitas vezes, vencendo outros grupos. Minha visão é totalmente oposta: quanto menos a vida for regida por conceitos, especialmente aqueles relacionados ao próprio ego, melhor. Depois de muitos anos conhecendo pessoas na sua intimidade, estou convencido de que aquilo que nos une é muito maior do que o que nos separa.

Transtornos da personalidade: diagnósticos e moralismos

Timon Studler

Muito se discute sobre a aplicação do modelo médico na área de saúde mental. Um dos focos de discussão é a forma como são vistos os transtornos: desde “doenças” com causas biológicas para alguns autores como totalmente inexistentes para outros. Como já discutimos aqui, os transtornos mentais são constructos delimitados por um grupo de especialistas e reformulados de tempos em tempos. O próprio fato de os critérios diagnósticos serem revistos periodicamente permite a crítica em relação à sua validade como um todo.

Por outro lado, parece que apenas ao considerar que os transtornos são “doenças” com chancela médica é que se consegue dar ao sofrimento a seriedade necessária para que as pessoas possam obter tratamentos nas esferas pública e privada, afastamentos do trabalho e uma discussão ampla sobre quais aspectos — culturais, biológicos e pessoais — favorecem o surgimento desses quadros.

Talvez o grupo de transtornos que mais depende da cultura são os transtornos de personalidade. O DSM (APA, 2014), catálogo mais utilizado para diagnóstico em saúde mental, descreve os transtornos de personalidade como “um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo” (p. 645).

Vou listar os mais comuns, ainda de acordo com o DSM:

  • Transtorno da personalidade antissocial é um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros.
  • Transtorno da personalidade borderline é um padrão de instabilidade nas relações interpessoais, na autoimagem e nos afetos, com impulsividade acentuada.
  • Transtorno da personalidade histriônica é um padrão de emocionalidade e busca de atenção em excesso.
  • Transtorno da personalidade narcisista é um padrão de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia.
  • Transtorno da personalidade evitativa é um padrão de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade a avaliação negativa.
  • Transtorno da personalidade dependente é um padrão de comportamento submisso e apegado relacionado a uma necessidade excessiva de ser cuidado.

Olhando para essa lista, percebe-se que as descrições se referem a modos de ser. Claro, que podem trazer sofrimento e dificuldades para as pessoas que os apresentam, mas é estranho enxergá-los como algo que pertença à esfera da saúde.

O DSM também diz: “Os traços de personalidade constituem transtornos da personalidade somente quando são inflexíveis e mal-adaptativos e causam prejuízo funcional ou sofrimento subjetivo significativos.” (p. 647) O termo mal-adaptativo é central aqui, pois denota que a pessoa não está bem adaptada ao seu meio. O que me intriga aqui é porque isso é uma questão médica. Se a pessoa não está adaptada, o problema é dela ou do meio? O que é essa adaptação que é vista como desejável? Quem julga o quanto a pessoa deveria estar adaptada ou “funcionando”?

Essas questões me levam a pensar que a avaliação diagnóstica dos transtornos de personalidade não passa de moralismo disfarçado de ciência médica. Assim como os sacerdotes faziam em outros tempos, hoje são os cientistas, os médicos e os profissionais de saúde em geral que dizem como as pessoas devem viver, o que é esperado delas, o que é desejável e adequado. E, claro, quando a pessoa não atende às expectativas, ela é rotulada como “desviada” e um tratamento é prescrito.

Só que, no caso dos transtornos de personalidade, o “tratamento” é uma saia justa até para os médicos. Se em quadros como depressão e ansiedade existem medicamentos já bastante estudados que trazem alívio dos sintomas, não existem pílulas para pessoas que não se adaptam. Algumas vezes, é possível abordar com medicamentos certos traços mais “fisiológicos” desses transtornos, como a impulsividade ou pensamentos obsessivos. Mas não há remédio para o medo de rejeição de alguém com transtorno da personalidade borderline ou transtorno da personalidade evitativa.

A mesma dificuldade também se apresenta para os psicólogos, especialmente se nos propusermos a mudar esses padrões de comportamento. Não existem nenhuma forma de terapia eficaz para “tratar” alguém com transtorno de personalidade antissocial, por exemplo. Lutar contra esses traços é frustrante tanto para o terapeuta como para a pessoa atendida e já vi muitos colegas que — compreensivelmente — fogem do atendimento de pessoas com esse tipo de diagnóstico.

Seria hipocrisia da minha parte dizer que eu nunca trabalho com diagnósticos — ou, mais precisamente, hipóteses diagnósticas — nos meus atendimentos. Existem algumas situações em que falar nesses termos pode ser benéfico para a pessoa. Geralmente são casos em que a pessoa tem a sensação de realmente não se encaixar, de ter dificuldades mais acentuadas em uma determinada área e, consequentemente, muito sofrimento. Quando esse quadro tem a intensidade suficiente para se encaixar com uma hipótese diagnóstica de transtorno de personalidade, por vezes eu comento sobre isso com a pessoa atendida. Explico sobre o quanto um diagnóstico é conceitual e faço todas as ressalvas. Depois disso, lemos os critérios juntos e pergunto o que ela acha.

Em muitos casos, ter contato com essa hipótese diagnóstica traz alívio para a pessoa. Ela acha um “motivo” para as suas dificuldades e entende que não está sozinha no seu padrão de funcionamento. Se antes ela sofria e se paralisava porque percebia em si obstáculos que outras pessoas não tinham, agora ela vê isso como compreensível e, paradoxalmente, passa a agir mais livremente do que antes, sabendo que certas coisas serão mesmo difíceis para ela. Se as coisas seguem bem, ela consegue desenvolver um grau de autoaceitação e autocompaixão que a permitem sofrer menos e até a “funcionar” melhor, ainda que esse não seja o objetivo da intervenção.

Em nenhum momento, na minha prática, falar em diagnóstico se refere a “consertar”, “curar” ou “resolver” os padrões vistos como “mal-adaptativos” da pessoa. Ao contrário, serve para que ela se libere das tentativas de se adequar sem considerar as suas próprias especificidades. Se para a pessoa se aceitar é difícil, ter uma razão “científica” para que ela seja como é pode permitir isso. Mais do que uma verdade, o diagnóstico aqui é uma estratégia. No fim, conforme a pessoa navega melhor pelas suas características e pelos seus contextos, o rótulo do transtorno vai se enfraquecendo, ainda que os traços que o definem continuem lá. Usa-se, então, o diagnóstico para que ele possa ser esquecido.

Felizmente hoje não se tolera mais, a menos que seja para preservar a vida da pessoa e daquelas que a cercam, procedimentos como internações involuntárias, cerceamento de liberdade a existência de manicômios. Mas ainda há um certo resquício dessa lógica na saúde mental, em que alguns diagnósticos parecem se referir a regras de conduta e bom comportamento. Os profissionais de saúde mental devem focar essencialmente no sofrimento da pessoa, no esclarecimento de suas dificuldades, mas não — por mais que isso seja difícil — em ditar como elas devem viver.

Referência

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.