Não tenho identidade

Foto: Austin Ramsey

Num mundo com oito bilhões de pessoas e extrema conectividade, gostamos de nos sentir únicos e especiais. Por isso, nos definimos a partir de grupos de identidades. Papeis familiares, profissão, origem geográfica, classe social, posição política e religiosa, raça, gênero, preferências musicais e esportivas. Pela importância egóica dessas categorias, não apenas as usamos para nos apresentar no mundo, mas queremos e exigimos que elas sejam reconhecidas e valorizadas. Não raramente, contrapomos nossas identidades frente a outras que vemos como opostas e incompatíveis, em competições por mais importância ou relevância. Podemos direcionar o ódio pelas nossas frustrações de vida para categorias específicas de identidades díspares daquelas em que nos vemos.

Posso elencar uma série de categorias de identidades que seriam aplicáveis a mim: homem, brasileiro, psicólogo, pai, marido, pardo, ex-católico e por aí vai. O curioso é que essas ideias não poderiam significar menos para mim. Mesmo as mais valorizados socialmente, como “pai” ou “profissional de saúde”. E não é que eu não esteja totalmente inserido nesses papeis na prática — é nos conceitos que não me vejo.

Quando estou com meu filho, não me vejo como um “pai”. Me vejo apenas na experiência direta de estar com ele. Quando atendo uma pessoa, não me vejo como “psicólogo”, me vejo apenas na experiência direta de estar com a pessoa. Que dirá então de aspectos mais abstratos e pouco ligados à experiência diária, como raça, religiosidade ou classe social. Tenho consciência do argumento que pode ser usado, de que fazer parte de um ou outro grupo pode aumentar ou reduzir a chance de que certas coisas possam acontecer. Ainda assim, não consigo ver relevância. A vida continua sendo o que é.

Me afastar desses conceitos foi um exercício, que se iniciou com as leituras e práticas budistas. Em especial do Zen, que desconfia tanto de descrições e palavras. E por isso mesmo nunca me vi como budista — seria um contrassenso. Outros autores, mais do que questionar o problema dos conceitos, vão além: apontam para as consequências de sofrimento para a pessoa e a divisão que apegar-se a papeis e identidades traz. Com o tempo, o apego a esses rótulos sociais foi diminuindo, e cada vez mais a relevância do aqui agora sem conceitos foi se fortalecendo.

É claro que no dia a dia é preciso se colocar dentro desses papeis para as burocracias da vida. Sou “pai” quando faço a matrícula do meu filho na escola e “psicólogo” quando emito um recibo de um atendimento. As outras pessoas também vão me colocar dentro desse ou daquele grupo (algo sobre o qual não tenho o menor controle) e talvez me avaliem a partir dessas classificações. Mas, para mim, esses títulos não significam nada. A riqueza das experiências não está nos nomes, do mesmo jeito que não atribuo aos rótulos as causas de eventuais sofrimentos.

Da mesma forma que a ansiedade extrema diz que tudo será melhor quando a vida toda estiver no controle, o apego às identidades diz que tudo será melhor quando ela estiver no topo, reconhecida e, muitas vezes, vencendo outros grupos. Minha visão é totalmente oposta: quanto menos a vida for regida por conceitos, especialmente aqueles relacionados ao próprio ego, melhor. Depois de muitos anos conhecendo pessoas na sua intimidade, estou convencido de que aquilo que nos une é muito maior do que o que nos separa.

Transtornos da personalidade: diagnósticos e moralismos

Timon Studler

Muito se discute sobre a aplicação do modelo médico na área de saúde mental. Um dos focos de discussão é a forma como são vistos os transtornos: desde “doenças” com causas biológicas para alguns autores como totalmente inexistentes para outros. Como já discutimos aqui, os transtornos mentais são constructos delimitados por um grupo de especialistas e reformulados de tempos em tempos. O próprio fato de os critérios diagnósticos serem revistos periodicamente permite a crítica em relação à sua validade como um todo.

Por outro lado, parece que apenas ao considerar que os transtornos são “doenças” com chancela médica é que se consegue dar ao sofrimento a seriedade necessária para que as pessoas possam obter tratamentos nas esferas pública e privada, afastamentos do trabalho e uma discussão ampla sobre quais aspectos — culturais, biológicos e pessoais — favorecem o surgimento desses quadros.

Talvez o grupo de transtornos que mais depende da cultura são os transtornos de personalidade. O DSM (APA, 2014), catálogo mais utilizado para diagnóstico em saúde mental, descreve os transtornos de personalidade como “um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo” (p. 645).

Vou listar os mais comuns, ainda de acordo com o DSM:

  • Transtorno da personalidade antissocial é um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros.
  • Transtorno da personalidade borderline é um padrão de instabilidade nas relações interpessoais, na autoimagem e nos afetos, com impulsividade acentuada.
  • Transtorno da personalidade histriônica é um padrão de emocionalidade e busca de atenção em excesso.
  • Transtorno da personalidade narcisista é um padrão de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia.
  • Transtorno da personalidade evitativa é um padrão de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade a avaliação negativa.
  • Transtorno da personalidade dependente é um padrão de comportamento submisso e apegado relacionado a uma necessidade excessiva de ser cuidado.

Olhando para essa lista, percebe-se que as descrições se referem a modos de ser. Claro, que podem trazer sofrimento e dificuldades para as pessoas que os apresentam, mas é estranho enxergá-los como algo que pertença à esfera da saúde.

O DSM também diz: “Os traços de personalidade constituem transtornos da personalidade somente quando são inflexíveis e mal-adaptativos e causam prejuízo funcional ou sofrimento subjetivo significativos.” (p. 647) O termo mal-adaptativo é central aqui, pois denota que a pessoa não está bem adaptada ao seu meio. O que me intriga aqui é porque isso é uma questão médica. Se a pessoa não está adaptada, o problema é dela ou do meio? O que é essa adaptação que é vista como desejável? Quem julga o quanto a pessoa deveria estar adaptada ou “funcionando”?

Essas questões me levam a pensar que a avaliação diagnóstica dos transtornos de personalidade não passa de moralismo disfarçado de ciência médica. Assim como os sacerdotes faziam em outros tempos, hoje são os cientistas, os médicos e os profissionais de saúde em geral que dizem como as pessoas devem viver, o que é esperado delas, o que é desejável e adequado. E, claro, quando a pessoa não atende às expectativas, ela é rotulada como “desviada” e um tratamento é prescrito.

Só que, no caso dos transtornos de personalidade, o “tratamento” é uma saia justa até para os médicos. Se em quadros como depressão e ansiedade existem medicamentos já bastante estudados que trazem alívio dos sintomas, não existem pílulas para pessoas que não se adaptam. Algumas vezes, é possível abordar com medicamentos certos traços mais “fisiológicos” desses transtornos, como a impulsividade ou pensamentos obsessivos. Mas não há remédio para o medo de rejeição de alguém com transtorno da personalidade borderline ou transtorno da personalidade evitativa.

A mesma dificuldade também se apresenta para os psicólogos, especialmente se nos propusermos a mudar esses padrões de comportamento. Não existem nenhuma forma de terapia eficaz para “tratar” alguém com transtorno de personalidade antissocial, por exemplo. Lutar contra esses traços é frustrante tanto para o terapeuta como para a pessoa atendida e já vi muitos colegas que — compreensivelmente — fogem do atendimento de pessoas com esse tipo de diagnóstico.

Seria hipocrisia da minha parte dizer que eu nunca trabalho com diagnósticos — ou, mais precisamente, hipóteses diagnósticas — nos meus atendimentos. Existem algumas situações em que falar nesses termos pode ser benéfico para a pessoa. Geralmente são casos em que a pessoa tem a sensação de realmente não se encaixar, de ter dificuldades mais acentuadas em uma determinada área e, consequentemente, muito sofrimento. Quando esse quadro tem a intensidade suficiente para se encaixar com uma hipótese diagnóstica de transtorno de personalidade, por vezes eu comento sobre isso com a pessoa atendida. Explico sobre o quanto um diagnóstico é conceitual e faço todas as ressalvas. Depois disso, lemos os critérios juntos e pergunto o que ela acha.

Em muitos casos, ter contato com essa hipótese diagnóstica traz alívio para a pessoa. Ela acha um “motivo” para as suas dificuldades e entende que não está sozinha no seu padrão de funcionamento. Se antes ela sofria e se paralisava porque percebia em si obstáculos que outras pessoas não tinham, agora ela vê isso como compreensível e, paradoxalmente, passa a agir mais livremente do que antes, sabendo que certas coisas serão mesmo difíceis para ela. Se as coisas seguem bem, ela consegue desenvolver um grau de autoaceitação e autocompaixão que a permitem sofrer menos e até a “funcionar” melhor, ainda que esse não seja o objetivo da intervenção.

Em nenhum momento, na minha prática, falar em diagnóstico se refere a “consertar”, “curar” ou “resolver” os padrões vistos como “mal-adaptativos” da pessoa. Ao contrário, serve para que ela se libere das tentativas de se adequar sem considerar as suas próprias especificidades. Se para a pessoa se aceitar é difícil, ter uma razão “científica” para que ela seja como é pode permitir isso. Mais do que uma verdade, o diagnóstico aqui é uma estratégia. No fim, conforme a pessoa navega melhor pelas suas características e pelos seus contextos, o rótulo do transtorno vai se enfraquecendo, ainda que os traços que o definem continuem lá. Usa-se, então, o diagnóstico para que ele possa ser esquecido.

Felizmente hoje não se tolera mais, a menos que seja para preservar a vida da pessoa e daquelas que a cercam, procedimentos como internações involuntárias, cerceamento de liberdade a existência de manicômios. Mas ainda há um certo resquício dessa lógica na saúde mental, em que alguns diagnósticos parecem se referir a regras de conduta e bom comportamento. Os profissionais de saúde mental devem focar essencialmente no sofrimento da pessoa, no esclarecimento de suas dificuldades, mas não — por mais que isso seja difícil — em ditar como elas devem viver.

Referência

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.

Julgamentos na psicoterapia

duas pessoas conversando e tomando café

Muitas pessoas — em especial aquelas que atendo — perguntam-me sobre os julgamentos que um terapeuta faz dos seus pacientes. Quando respondo que não fico fazendo julgamentos da maneira que a pessoa imagina, isso gera uma certa desconfiança. O julgamento sobre o qual está se discutindo, nesses momentos, é um julgamento moral, ou seja, uma avaliação do que é certo ou errado. A principal preocupação das pessoas é saber se a postura de não julgar do terapeuta não é falsa e como eu lido quando o comportamento ou as ideias de uma pessoa atendida destoam das minhas. 

Acho que esse é um questionamento muito válido. Afinal de contas, quando as pessoas chegam num contexto de psicoterapia, elas quase sempre esperam os mesmos tipos de julgamentos aos quais estão sujeitas em outras situações. Além disso, acham muito difícil que uma pessoa, por mais neutra que pareça, não esteja, lá no fundo, tecendo uma série de avaliações sobre se o que a pessoa faz ou pensa é ou não adequado. Muitas vezes elas imaginam que o terapeuta esteja fazendo julgamentos que, na verdade, são elas mesmas que estão fazendo.

Por incrível que pareça, a postura de não julgar moralmente é sim possível e acaba sendo cada vez mais natural para o terapeuta com o tempo. Em psicologia comportamental, se dá o nome para essa postura de audiência não punitiva. A ideia é que o terapeuta seja capaz de ouvir sem gerar qualquer consequência negativa para a fala da pessoa que está sendo atendida. Pois, só assim, ela será capaz de se sentir realmente à vontade para trazer todos os conteúdos que julgar relevantes, em especial aqueles que ela não pode falar com outras pessoas pelo receio do julgamento. Esses conteúdos podem justamente ser os mais importantes no processo terapêutico.

Naturalmente, para que a pessoa se sinta assim, ela precisa ter certeza de que a postura de não julgamento por parte do terapeuta é de fato genuína. Eu geralmente argumento que ela é sim genuína, por alguns motivos. O primeiro deles é que, quando uma pessoa chega para a terapia, nós estamos muito preocupados em entendê-la. E entendê-la de uma maneira humana e técnica, utilizando o referencial teórico de base do profissional. No caso da psicologia comportamental, entendemos que o que a pessoa pensa e faz deriva de incontáveis variáveis nos níveis biológico, social e de história de vida. Então, nos momentos iniciais da terapia, estamos buscando identificar algumas peças desse enorme quebra-cabeças que nos faça ver o sentido na maneira com que aquela pessoa age ou pensa. Ao montarmos essa narrativa, observando a pessoa de perto, entendemos que o que a pessoa é sempre faz sentido. Se não faz sentido, é porque não olhamos de perto o suficiente, ou não temos informações suficientes. Qualquer julgamento moral seria superficial, irrelevante e até um obstáculo para esse processo. 

O outro motivo pelo qual não se julga é porque estamos ocupados com o sofrimento da pessoa. Sempre enxergamos o sofrimento como legítimo, por mais banal ou ilógico que superficialmente poderia parecer. A preocupação em acolher e apoiar é incompatível com uma postura de julgamento. A psicoterapia deve ser um espaço de compreensão, respeito e acolhimento. Se o profissional realmente acredita nisso, sua postura natural será de empatia.

Entretanto, nós, psicólogos, podemos fazer outros tipos de avaliação. Podemos, por exemplo, falar de uma avaliação funcional, tendo como base os próprios valores e princípios da pessoa atendida. Vamos supor que alguém, em terapia, diga que busca uma vida mais autônoma e tenha isso como valor. O terapeuta, por sua vez, observa que essa pessoa se comporta de forma a aumentar ou manter a sua dependência nas relações. Nesse caso, ele pode fazer uma avaliação tendo como base essa discrepância: “veja, você me disse que busca uma vida mais autônoma. Porém, essa e aquela atitude colocam você numa posição de mais dependência nesses contextos. Você concorda com isso? O que acha de tentarmos entender melhor o que está acontecendo?” Esse não é um julgamento moral — o terapeuta não está falando sobre certo ou errado. Está apenas fazendo um apontamento com base no que a própria pessoa trouxe. A partir daí, a pessoa atendida pode refletir e tomar decisões com mais consciência, com apoio do terapeuta.

No meu caso, vejo que há momentos em que lanço mão de algo que podemos chamar de um julgamento clínico, em situações em que há riscos relacionados à saúde mental. Quando uma pessoa, por exemplo, está muito deprimida, eu posso apontar que o seu quadro não é bom e que atitudes precisam ser tomadas. Do contrário, ela poderá oferecer risco para si ou para os outros. Nessas situações, ainda não é um julgamento moral: é uma avaliação técnica com base na psicopatologia — tomando os devidos cuidados, pois a psicopatologia pode ser um tanto quanto moralista, mas isso é tema para outra conversa. Quando a pessoa pode não ter clareza da gravidade da sua situação, sinto que é uma postura de cuidado e responsabilidade dizer que ela precisa, por exemplo, de mais cuidados ou condutas específicas. Isso sem perder de vista a compreensão e a empatia.

Às vezes as pessoas, ainda assim, perguntam sobre como é atender alguém que tenha opiniões muito diferentes das minhas. Voltando à compreensão de que aquilo que uma pessoa é e pensa se origina de diversos aspectos, em especial sua história de vida, é possível não só ver a opinião da pessoa como resultado disso tudo como também a minha própria. Só faço o que faço e penso o que penso por conta da minha própria história. Se as circunstâncias fossem diferentes, eu seria diferente. Isso torna possível um distanciamento em relação às ideias que permite atender quem pensa diferente, na medida que nos mantém próximos emocionalmente da pessoa. Entretanto, é possível que discrepâncias muito significativas tornem essa postura muito difícil. Na minha experiência isso é raro, e, quando acontece, o processo terapêutico não vai muito longe. O “santo não bate” e naturalmente cada um segue o seu caminho.

Algo que me anima muito em ser um psicoterapeuta é poder conviver e estar próximo de pessoas muito diferentes de mim e diferentes entre si. De diferentes idades, etnias, origens, níveis socioeconômicos, posições políticas, orientações sexuais etc., cada uma com uma multiplicidade de perspectivas e conteúdos. Isso só é possível por conta dessa postura genuína em que o julgamento moral não aparece. Quando conseguimos olhar para alguém além do julgamento, com base na compreensão e na empatia, sempre vamos ter uma experiência enriquecedora de intimidade com o outro. É essa forma distinta de se relacionar que torna o espaço da psicoterapia algo único.

Foto: Priscilla Du Preez