A busca por soluções rápidas

Quando estamos sofrendo, queremos nos livrar do sofrimento o mais rápido possível. Por isso, gostamos muito da ideia de que seria possível resolver nossos problemas de forma expressa. Uma dieta milagrosa para perder vários quilos em um mês, um medicamento que faça com que nossa ansiedade desapareça, um empréstimo para pagar as contas que estão atrasadas.

A psicoterapia também pode ser vista como uma solução expressa para o sofrimento. Muitas pessoas, ao procurar um psicólogo, acreditam que receberão respostas prontas e claras sobre como se livrar da dor que estão sentindo. De preferência, sem abrir mão dos ganhos que um comportamento problemático tem ou sem mudanças bruscas. Infelizmente, mesmo nas situações que conseguimos, enquanto terapeutas, avaliar as atitudes da pessoa atendida com relativa rapidez e trazer clareza na relação entre o comportamento da pessoa e o seu sofrimento, isso não quer dizer que o processo completo seja fácil e rápido. Ao contrário: é bem comum que o caminho para uma vida mais significativa envolva ainda mais dor no curto prazo.

Na verdade, a própria procura por soluções rápidas pode ser parte do problema. As estratégias descritas no primeiro parágrafo são exemplos de  “soluções” imediatas que provavelmente trarão mais problemas a longo prazo: a dieta restritiva pode levar, no fim das contas, a um ganho de peso maior do que o que se estava antes; o medicamento para ansiedade, sem avaliar as suas causas e as mudanças necessárias, pode deixar a pessoa mais ansiosa e dependente; o empréstimo para pagar as contas, sem se rever os gastos, vai apenas gerar mais dívidas.

Podemos dizer, então, que em muitos casos em que a pessoa busca soluções rápidas, o problema está justamente aí. É provável que ela tenha dificuldade em ter paciência, saber esperar e buscar resultados a longo prazo. O processo de uma terapia envolve esforço. É preciso reconhecer as dificuldades, realizar mudanças duradouras, aprender novas formas de agir e conseguir manter isso ao longo do tempo.

Isso não quer dizer que acho que a pessoa precisa passar vários anos na terapia sem sentir nenhum progresso. Ao contrário, acredito que o ideal é que a pessoa, na terapia, sinta que algo está acontecendo: que ela está agindo para se entender melhor e a partir disso, mudar aquilo que acha que precisa mudar, mas entendendo que o processo irá tão rápido quanto ela de fato consegue realizar mudanças duradouras na forma de conduzir sua vida.

Penso que é, inclusive, parte do processo que a pessoa aprenda a lidar com o fato das coisas não serem solucionáveis facilmente. Algumas coisas não têm solução. Outras demandam paciência. Encarar a vida de uma outra perspectiva, que não seja o próprio desejo de ter tudo agora, de fugir do sofrimento a qualquer custo, pode ser o maior ganho da terapia, independentemente dos outros resultados concretos que essa mudança de atitude pode trazer.

 

Foto: Raquel Smith

Hsin Hsin Ming

Hin Hsin Ming é um texto zen atribuído ao patriarca Jianzhi Sengcan, que viveu na China e morreu no ano de 606. O título pode ser traduzido como “Fé na Mente” e relaciona o sofrimento à nossa visão dualista de mundo. No momento em que categorizamos ou classificamos algo como “bom” ou “mau”, caímos na dualidade. Para o zen, não precisamos buscar a verdade, mas simplesmente abandonar as nossas opiniões e enxergar o mundo como uma coisa só, incluindo aquilo que normalmente vemos como opostos.

A versão a seguir é uma tradução de Murillo Nunes de Azevedo, baseada na tradução de Richard B. Clarke para o inglês e publicado pela Sanga Águas da Compaixão. Para um aprofundamento, há um estudo sobre o texto no site Sacred Texts (em inglês).

Versos sobre a fé na mente

O Grande Caminho não é difícil
Para aqueles que não têm preferências.
Quando o amor e o ódio estão ambos ausentes
Tudo se torna claro e sincero.

Fazendo-se a menor distinção entretanto
O céu e a terra são colocados infinitamente distantes.
Se queres ver a verdade,
Então não tenha opiniões a favor ou contra coisa alguma.
Quando o profundo significado das coisas não é compreendido
A essencial paz da mente é perturbada inutilmente.

O Caminho é perfeito como o vasto espaço
Onde nada falta e nada está em excesso.
Na verdade, é devido à nossa opção em aceitar ou rejeitar
Que não vemos a verdadeira natureza das coisas.

Não vivas enredado pelas coisas externas,
Nem preso às sensações interiores de vazio.
Seja sereno na unidade de todas as coisas
E tais idéias errôneas irão desaparecer por si mesmas.

Quando tentas parar a atividade para alcançar a passividade,
O teu próprio esforço irá te devolver à atividade.
Enquanto permaneceres num extremo ou no outro
Nunca conhecerás a Unidade.

Aqueles que não vivem no Caminho Único
Falham tanto na atividade quanto na passividade,
Tanto na  afirmação quanto na negação.

Negar a realidade das coisas é perder sua realidade.
Afirmar o vazio das coisas é perder sua realidade.
Quanto mais falares e pensares sobre isso,
Mais te desviarás para longe da verdade.
Pare de falar e de pensar,
E nada haverá que não possas conhecer.

Retornar à raiz é encontrar o significado,
Mas perseguir as aparências é perder a fonte.
No momento da iluminação interior
Há um caminho além da aparência e do vazio.

Às mudanças que parecem ocorrer no mundo vazio
Chamamos de reais somente porque somos ignorantes.
Não busques a verdade;
Apenas deixe de acalentar opiniões.

Não permaneças no estado dualístico;
Evite cuidadosamente tais investidas.
Se houver, mesmo que seja um traço,
Disto ou daquilo, do certo e do errado,
A essência da Mente se perderá na confusão.
Muito embora todas as dualidades provenham do Um,
Não fiques apegado a este Um.
Quando a mente existe impertubável no caminho,
Nada no mundo pode ofender,
E quando uma coisa não pode mais ofender,
Ela cessa de existir no velho modo.

Quando não surgem mais pensamentos discriminatórios,
A velha mente cessa de existir.
Quando os objetos do pensamento desaparecem,
O motivo do pensamento desaparece;
Assim, quando a mente desaparece, os objetos desaparecem

As coisas são objetos devido ao sujeito (mente):
A mente (sujeito) é assim devido às coisas (objeto).
Compreenda a relatividade de ambos
E a realidade básica: a unidade do Vazio.

Neste Vazio os dois são indistinguíveis
E cada um contém em si mesmo todo o mundo.
Se não discriminares o áspero do fino
Não serás tentado ao preconceito e à opinião.

Viver no Grande Caminho não é fácil nem difícil,
Mas aqueles com visões limitadas são temerosos e irresolutos;
Quanto mais se apressam, mais devagar eles vão,
E o apego não pode ser limitado;
Mesmo o apego à ideia de iluminação é andar sem rumo.

Deixe que as coisas sigam o seu próprio caminho
E não haverá mais o vir ou o ir.
Obedeça à natureza das coisas (tua própria natureza),
E caminharás livremente sem seres perturbado.

Quando o pensamento está escravizado, a verdade está oculta,
Pois tudo é indistinto e nada está claro
E a cansativa prática de julgar traz aborrecimento e cansaço.
Que benefício pode nos trazer a distinção e a separação?

Se queres te movimentar no Caminho Único
Não desgostes nem mesmo do mundo dos sentidos e das idéias.
Na verdade, aceitá-lo plenamente
É identificar-se com a verdadeira Iluminação.
O homem sábio não se esforça para alcançar qualquer meta,
Mas o homem tolo é escravo e ele mesmo se escraviza.

Há somente um darma,  uma verdade, uma lei e não muitas.
As distinções surgem das aferradas necessidades do ignorante.
Buscar a Mente com a mente que discrimina é o maior de todos os erros.

O repouso e a intranquilidade derivam da ilusão;
Com a Iluminação não há o gostar e o desgostar.
Todas as dualidades surgem da dedução ignorante.
Elas são como sonhos ou flores no ar,
É tolice tentar capturá-las
O ganho e a perda, o certo e o errado:
Tais pensamentos têm que ser abolidos completamente.

Se o olho nunca dorme, todos os sonhos naturalmente cessarão.
Se a mente não fizer qualquer discriminação,
As dez mil coisas são o que elas são, uma única essência.

Compreender o mistério desta Única Essência
É ser liberado de todas as malhas a que estamos presos.
Quando todas as coisas são vistas igualmente
Alcançamos a atemporal Auto-essência.
Não são mais possíveis comparações ou analogias
Neste estado em que não há nem causas nem relações.

Considere o movimento estacionário e o estacionário em movimento
E ambos, o movimento e o repouso, desaparecerão.
Quando tais dualidades deixam de existir
A Unidade em si mesma não pode existir.
A esta finalidade última, nenhuma lei ou descrição pode ser aplicada.

Para a mente unificada de acordo com o Caminho
Cessam todos os esforços autocentrados.
As dúvidas e irresoluções desaparecem
E a vida na verdadeira fé é possível.
Com um simples golpe estamos livres da escravidão;
Nada nos prende e nós não nos prendemos à nada.

Tudo é vazio, claro, auto-iluminante,
Sem qualquer esforço do poder da mente.
Aqui o pensamento, o sentimento, o conhecimento e a imaginação
Não têm qualquer valor.
Neste mundo da Essencialidade
Não há nem ser nem outra coisa que seja o não-ser.
Para entrar diretamente em harmonia com esta realidade
Diga simplesmente quando a dúvida surgir: “não dois”.
Neste “ não dois” nada é separado, nada é excluído.
Não importa quando ou onde,
A Iluminação significa entrar nesta verdade.
E esta verdade está além do aumento ou diminuição no tempo e no espaço;
Num simples pensamento estão dez mil anos.

O Vazio aqui, o Vazio lá,
Mas o universo infinito permanece sempre diante dos teus olhos.
Infinitamente grande e infinitamente pequeno;
Sem diferença, pois a definições desaparecem
E nenhum limite é visto.
Isso também ocorre com o Ser e o não-Ser.
Não perca tempo com dúvidas e argumentos que nada têm que ver com isso.

Uma coisa, todas as coisas;
Movem-se e se mesclam sem distinção.
Viver nesta realização
É não ter ansiedade acerca da não-perfeição
Viver nesta fé é a estrada para a não-dualidade,
Porque o não-dual é uno com a mente confiante.

Palavras!
O Caminho está além da linguagem,
Pois nele não há nem o ontem, nem o amanhã, nem o hoje.

 

Foto por Thomas Tixtaaz.

Disponibilidade

Existe um conceito bastante marcante que é comum tanto à Terapia de Aceitação de Compromisso (ACT) quanto à Terapia Comportamental Dialética (TCD): o de disponibilidade. Em inglês, o termo utilizado é willingness. Não existe uma tradução precisa para essa palavra. Willingness pode significar complacência, conformidade, concordância. Gosto de usar o termo disponibilidade pois acredito que descreve melhor o seu uso nessas terapias.

Os criadores da ACT descrevem o conceito como “a escolha voluntária e baseada em valores de possibilitar ou manter contato com experiências privadas ou com os eventos que podem causá-las”1. Já na TCD, cita-se uma definição de Gerald May2: “disponibilidade significa abandonar a noção de ser separado e imergir profundamente no processo da vida em si. (…) Disponibilidade é dizer sim ao mistério de estar vivo a cada momento.” Em outras palavras, é ter abertura ao processo da vida, tal qual ele é, independentemente do que temamos que ele possa nos causar.

Geralmente nós tentamos controlar tudo o que acontece conosco. Buscamos, em especial, evitar tudo aquilo que imaginamos que pode nos trazer sofrimento ou dor. Muitas vezes deixamos de viver por não querer ter contato com a dor inevitável de escolhas difíceis ou dos riscos inerentes a um caminho que condiz com a forma como queremos viver. Esse controle e essa esquiva têm um custo alto. Em troca, na melhor das hipóteses, conseguimos com eles ficar apenas aliviados, quando conseguimos evitar tudo aquilo que tememos. Jon Kabat-Zinn descreve esse estado, metaforicamente, como “viver com o freio de mão puxado”.

Mudar esse padrão e mergulhar em tudo aquilo que a vida traz depende de uma compreensão e uma postura frente à própria existência que vai além da psicoterapia: depende de como a pessoa encara a vida, o universo, a existência. Se sentimos que somos apenas frágeis seres solitários soltos num mundo hostil, é muito difícil conseguir nos abrir. Se tememos cada cenário catastrófico que nossa mente cria, estaremos sempre dizendo “não” para todas as nossas possibilidades.

Por outro lado, quando se tem essa disponibilidade, ou seja, quando se diz “sim” para a vida, quando se “topa” a vida, com tudo que ela traz — alegrias e tristezas, sofrimentos e prazeres, paz e ansiedade — estamos realmente vivendo. Quando paramos para notar quão fantástico é cada momento, cada som, cada cor, cada detalhe que tomamos como trivial, estaremos nos abrindo. Se você conseguir ir a fundo nisso, e conseguir se encantar de verdade com o simples fato de estar vivo, você poderá aproveitar até mesmo as suas dores.

Referências
1. Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2011). Acceptance and commitment therapy: The process and practice of mindful change. Guilford Press.
2. May, G. G. (1982). Will and spirit: A contemplative psychology. San Francisco: Harper & Row.

Foto: Martin Sattler