Os consultórios de psicologia estão cheios (e porque isso tem seu lado ruim)

Não temos dados claros sobre a demanda geral por serviços de psicologia no país. Entretanto, pelo que percebo da clínica onde estou e pelo relato de colegas, parece ter havido um aumento na demanda por atendimento psicológico nos últimos anos, apesar da crise. Há, inclusive, aumento na oferta de modalidades de atendimento, como as plataformas online, após aprovação do Conselho Federal de Psicologia.

Olhando superficialmente, isso pode parecer apenas positivo. Afinal de contas, as pessoas estão se cuidando, buscando ajuda, priorizando seu bem-estar. Percebo uma redução no estigma do fazer terapia, evidenciado pelo aumento no número de homens e pessoas mais velhas atendidas (que, de forma geral, apresentavam mais resistência). O fato de os seguros de saúde serem obrigados a arcar com as terapias psicológicas também deve contribuir, já que muitas pessoas que procuram atendimento utilizam esse recurso.

Mas olhemos mais de perto. As pessoas não procuram atendimento psicológico puramente por autoconhecimento ou porque querem se sentir ligeiramente melhor. As pessoas procuram atendimento por estarem em sofrimento, muitas vezes profundo. Considere a citação seguinte:

Nos anos 1960 e 1970, houve um movimento de diversos teóricos (Laing, Focault, Deleuze e Guattari, etc.) com argumentos sobre condições mentais extremas, como a esquizofrenia, considerando que a loucura não era uma categoria natural, e sim, política. Mas o que precisamos agora também é de uma politização dos transtornos bem mais comuns. E a questão é justamente o fato de serem tão comuns: no Reino Unido, a depressão é a condição mais tratada pelo NHS [equivalente ao SUS no Brasil]. Em seu livro The Selfish Capitalist, Oliver James propôs de forma convincente uma correlação entre o aumento nas taxas de sofrimento mental e a forma neoliberal de capitalismo praticada em países como Reino Unido, EUA e Austrália. Na mesma linha dos argumentos de James, quero argumentar que é necessário reenquadrar o crescente problema do estresse (e do sofrimento) nas sociedades capitalistas. Em vez de colocar o peso nos indivíduos em resolver o próprio sofrimento psicológico, ou seja, de aceitar essa ampla privatização do estresse que se deu nos últimos trinta anos, precisamos nos perguntar: como se tornou aceitável que tantas pessoas, em especial jovens, estejam doentes? E ‘epidemia de problemas mentais’ em sociedades capitalistas sugeririam que, em vez de ser o único sistema social que funciona, o capitalismo é inerentemente disfuncional, e que o custo em aparecer no trabalho é muito alto.

Esse é um trecho do livro Capitalist Realism (Realismo Capitalista) publicado em 2009 por Mark Fisher, que inclusive, cometeu suicídio oito anos depois justamente pelas dificuldades com a depressão.

Nós, psicólogos, estamos caindo na armadilha de considerar apenas o indivíduo ao olhar para o sofrimento humano. As teorias psicológicas costumam se basear em perspectivas biopsicossociais, ou seja, na interação entre aspectos biológicos, história de vida e ambiente social. Este último vem sendo negligenciado nos modelos mais recentes de psicoterapia, que inclusive tacham o indivíduo de desajustado, desadaptado e incompetente caso ele não consiga lidar com o mundo, pouco importando o quão hostil esse mundo seja.

As pessoas têm chegado nos consultórios ansiosas, deprimidas e esgotadas, mas o pior de tudo é que, além dessas condições, elas sofrem adicionalmente por acreditarem que isso se deve a algo que elas estejam fazendo errado. E, caso a psicoterapia não olhe para o contexto social do indivíduo — como o trabalho, a existência através do consumo, a intolerância — normalizando o sofrimento em tal contexto, ela apenas criará ainda mais sofrimento ao propor que a pessoa tem sim que se sentir bem apesar de todas as adversidades.

A psicologia clínica, então, situa-se numa encruzilhada. Pode silenciar-se em relação ao contexto destrutivo da nossa sociedade, recebendo as pessoas que buscam alívio sem ajudá-las a compreender todas as dimensões de seu mal-estar e trabalhando para produzir pessoas mais conformadas e neuróticas. Ou pode, com consciência crítica da realidade, oferecer apoio compreendendo que importantes causas do sofrimento são contextuais, liberando o indivíduo do peso paradoxal de lutar contra si mesmo.

 

Foto: Brandon Hoogenboom

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