“Meus problemas acabaram”

Como o home office mostra que pessoas consideradas transtornadas mentalmente podem ter apenas um problema: o ambiente de trabalho.

Desde o início da pandemia, tenho realizado meus atendimentos online. Dessa forma, tem sido possível acompanhar diversas pessoas passando por esse momento e notar quais os impactos psicológicos da epidemia sobre cada pessoa. Parecem existir algumas tendências, como a que percebo naqueles que continuam trabalhando via home office.

Para contextualizar: um dos meus maiores interesses de estudo é entender o que é exatamente aquilo que chamamos de “transtorno mental”. Recentemente, venho observando que muitos dos problemas mentais são apenas reflexos de aspectos sociais e culturais que são “privatizados”, ou seja, atribuídos ao indivíduo, como se ele fosse problemático independentemente dos seus contextos de vida. E um dos contextos mais nocivos nos quais estamos inseridos é o do trabalho e seu ambiente, o que para mim ficou ainda mais evidente durante essa pandemia.

Júlia*, de 34 anos, tem um cargo de gerência numa empresa multinacional. Ela precisa se deslocar diariamente dezenas de quilômetros, de transporte público, para o seu emprego. Embora sua relação com os colegas e sua chefe direta seja boa, ela precisa conviver com um superior hierárquico que incorpora todos os atributos do mau chefe: abuso, incoerência e às vezes simples crueldade. Há algumas semanas trabalhando de casa, Júlia parece muito diferente nas sessões. Calma, serena e bem-humorada, ela fala com mais leveza das suas atividades diárias. Não ter que se deslocar nem conviver com as pessoas que a desagradam tiraram boa parte da pressão sobre si. Consequentemente, boa parte dos ‘sintomas’ que ela apresentava e justificavam não só o atendimento psicológico como o tratamento psiquiátrico desapareceram. “Parece que os problemas acabaram”, concluímos em uma das sessões.

Milton, 50, segue na mesma linha. Diretor de uma empresa também com operações no Brasil e fora dele, ele relata que o volume de trabalho não mudou no home office. Porém, não precisar estar no trânsito diariamente e também não ter que conviver com colegas competitivos e nocivos — como é tão comum em níveis hierárquicos mais altos — fizeram com que ele se sentisse muito melhor nos últimos tempos. Também faz diferença o fato de poder estar mais perto de sua família, podendo interagir com esposa e filha nos intervalos que se dá ao longo do dia. Ele nota melhoras não só na forma como se sente, mas também na sua saúde física, que já esteve bem debilitada nos momentos de maior angústia dentro da empresa.

Esses dois exemplos colocam em xeque a postura das disciplinas de saúde mental (como psicologia e psiquiatria): na melhor das hipóteses, nosso trabalho é um paliativo para ajudar as pessoas a tolerarem um mundo intolerável — um mundo em que as pessoas levam horas para chegar num lugar em que não querem estar e ficar por lá ainda mais horas, apenas para sobreviver. Na pior das hipóteses, tentamos forçar o indivíduo a se adaptar e a se conformar com esse mundo, o que, obviamente, traz resultados ainda piores e cria um grande ressentimento das pessoas frente a essas disciplinas e seus profissionais.

Se quisermos fazer uma real diferença, precisamos deixar de olhar para as pessoas como se elas fossem problemáticas e entender que “transtornos” mentais são apenas reações totalmente compreensíveis frente a um mundo opressor e desumanizado. Ficar buscando causas internas para o sofrimento, nesses casos, é trazer ainda mais angústia.

A alternativa é a compreensão de que não há nada de errado com elas, e, sim, com os contextos em que vivemos, trazendo consciência não só sobre si, mas sobre a nossa sociedade e nossa cultura. Mais do que isso, é preciso entender que estigmatizar e castigar as pessoas pelas suas dificuldades numa sociedade doente é culpar a vítima. Nos dois exemplos que citei, é possível perceber que não precisamos de mais terapia e mais remédios; precisamos de menos trabalho, menos controle, menos tarefas sem sentido e mais tempo, mais contato com quem amamos e mais liberdade.

*Nomes fictícios

Foto: Lily Banse.

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