O conceito de autocuidado surgiu no contexto da saúde em meados do século passado. Ele era voltado para pacientes severamente comprometidos que, sob direcionamento de um profissional de saúde, poderiam realizar exercícios e outras atividades de maneira autônoma a fim de aprimorar sua condição. Já nos anos 60 e 70, o termo foi apropriado por movimentos em defesa dos direitos das mulheres e de pessoas pretas, sendo a ele atribuído uma conotação política. A ideia era responder com cuidado próprio a uma medicina que era vista como paternalista, racista e sexista, tendo sido disseminada em especial nas comunidades de mulheres negras nos Estados Unidos¹.
Ter autonomia para cuidar da própria saúde é um passo necessário, quando em oposição a um sistema que adoece. Entretanto, esses mesmos sistemas capitalistas neoliberais adoecedores têm também a capacidade de cooptar para a sua lógica tudo que surge dentro deles, inclusive as iniciativas que se contrapõem a seu funcionamento. Com o tempo, a ideia de autocuidado deixou de ser um ato de resistência para se tornar um incentivo para o consumo e uma forma de controle.
Frequentemente, a ideia de autocuidado está associada à de bem-estar ou de qualidade de vida. Embora pareçam positivos, esses conceitos dependem muito de como os vemos. Na forma em que eles são geralmente apresentados, eles partem de alguns pressupostos ocultos: a) é possível a qualquer pessoa estar bem, sentir-se bem, ser “feliz”; b) atingir esse estado é de total responsabilidade do indivíduo, não possuindo nenhuma relação com contextos sociais, econômicos e políticos; c) o autocuidado e o bem-estar requerem o consumo de produtos e serviços. O que está embutido na apresentação atual do autocuidado é a privatização do estresse, termo cunhado por Mark Fisher², em que ele descreve como na lógica neoliberal são imputados ao indivíduo responsabilidades e sofrimentos que são decorrentes do modelo estrutural em que ele se situa. Basicamente, nossa sociedade cria a doença e vende a cura, deixando esses processos ocultos. Nessa perspectiva, se você não está bem, é porque está fazendo algo errado.
Isso leva a um efeito que é observado muito frequentemente em sessões de psicoterapia durante a pandemia: culpar-se pelo próprio sofrimento. Apesar de estarmos numa situação de calamidade pública, privação de contato social, medo da morte, desemprego para alguns e trabalho em excesso para outros, as pessoas ainda acreditam que estão fazendo algo errado quando se sentem mal. Ou seja, a privatização do estresse foi bem sucedida. Já introjetamos o chefe autoritário que nos condena quando “fracassamos” na empreitada de estar bem. E é justamente por isso que, com o perdão do trocadilho, temos que ter cuidado com a ideia de autocuidado.
Num artigo³ que aborda preliminarmente a relação entre o isolamento social e a saúde mental, encontramos uma compilação das medidas que vem sendo empregadas nesse sentido. Entre perspectivas importantes no que tange às populações mais vulneráveis, há também recomendações que têm sido feitas por instituições e profissionais de saúde nesse momento, como:
- evitar (…) desinformação e o consumo de notícias sensacionalistas; evitar igualmente os excessos de informação;
- evitar o ócio, mas também a falta de pausas e descansos no home office;
- organizar uma rotina que equilibre atenção a si, ao trabalho e à família;
- manter atividades físicas, em ambientes protegidos ou em espaços abertos sem aglomerações;
- praticar atividades de relaxamento e meditação;
- a organização de uma agenda que equilibre horários de estudos e tempo para brincar, evitando excessos de eletrônicos e internet (no caso de crianças);
- manejo cuidadoso, pelos pais, de características típicas que podem se exacerbar neste período, como as condutas oposicionistas e o retraimento no quarto (no caso de adolescentes)
Ou seja, prega-se uma maneira correta de viver que, na minha experiência do consultório, tem trazido muito mais sofrimento do que alívio. Vejo essas recomendações como uma nova forma de moralismo disfarçada de preocupação com a saúde, na medida em que ignora contextos e atribui ao indivíduo todo o peso de manejar sua saúde mental.
As pessoas já estão naturalmente estressadas e ainda precisam dar conta de uma lista de recomendações para sentirem que estão “lidando” de forma adequada com a situação. Isso leva a uma multiplicação do sofrimento, em que camadas de dor se sobrepõem (a culpa por estar mal, vergonha por sentir desânimo, e assim por diante).
Infelizmente, essa é uma lógica que pode acabar permeando, também, a psicoterapia. Quando ela tem como pressupostos que a sua função é adequar as pessoas à circunstâncias violentas ou resolver os efeitos de problemas estruturais como se eles estivessem ao alcance do indivíduo, ela acaba acentuando esse sofrimento. Os psicólogos, muitas vezes bem intencionados e sem clareza de todos os aspectos envolvidos nessa lógica, endossam essa perspectiva. Além disso, eles também lucram com a cultura do autocuidado e do bem-estar como consumo de serviços.
Eu não quero dizer que as atitudes de autocuidado sejam ruins. Muito pelo contrário, elas são essenciais para conseguirmos tolerar o presente estado das coisas. No entanto, é preciso, em primeiro lugar, contextualizar muito bem esses comportamentos. Nessa perspectiva, o autocuidado envolve utilizar todos os recursos possíveis para amenizar o impacto de um contexto social que não é culpa da pessoa e nem está sob controle dela. É uma estratégia de sobrevivência a uma situação hostil. E a falta de autocuidado não deve ser usada para responsabilizar a pessoa em relação aos efeitos que ela sofre por viver nesse contexto. Muitas vezes a pessoa, depois de cumprir com todas as exigências do emprego e da casa, pode não ter condições, tempo ou ânimo para seguir todas as recomendações sobre como viver que aparecem nos jornais e redes sociais.
Em segundo lugar, a pessoa deve ter autonomia para determinar quais recursos utilizar e da forma que bem entender. Ela deve sempre ver com desconfiança as recomendações que recebe. Quais são as motivações de quem faz essas recomendações? Por exemplo, é perversão pura quando uma empresa recomenda aos seus funcionários aulas de ioga ou meditação enquanto exige jornadas de trabalho de 12 horas. A empresa sabe que está adoecendo seus funcionários, mas não realiza nenhum tipo de mudança estrutural que realmente promoveria saúde (ou melhor, evitaria doenças).
O autocuidado faz sentido quando é realizado de forma autônoma, quando se tem consciência de que ele é uma estratégia de sobrevivência que não vai resolver os problemas porque os problemas são estruturais e não estão no alcance da pessoa. Devemos praticá-lo com a clareza de que se vivêssemos num modelo social e econômico mais humano, ele não seria necessário.
Referências
- Harris, A. (2017). A history of self-care. http://www.slate.com/articles/arts/culturebox/2017/04/the_history_of_self_care.html
- Fisher, M. (2020). Realismo capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Autonomia Literária.
- Lima, R. C. (2020). Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 30(2), e300214. Epub July 24, 2020. https://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312020300214
Foto: Arif Riyanto
PARABÉNS ao Rodrigo, pela capacidade de análise e ‘leitura’ da conjuntura (e dos moventes) que prescrevem, acriticamente, o autocuidado em doses cavalares, para tudo e para todos e todas. O modelo patogênico de economia e sociedade faz o grande estrago coletivo, e depois retira ou releva o papel do Estado (constitucionalmente responsável por promover e velar pelo ‘estado de bem estar social’, pela justiça e pela saúde dos cidadãos), e joga no colo do indivíduo a responsabilidade de ‘salve-se quem puder’. Com o agravante da “culpabilização da vítima”, que, além de ser culpada por adoecer, também é culpada por não saber cuidar-se bem. “Cuide-se” pode ser uma palavra afetiva, mas também pode ser um decreto autoritário, que traz estas duas culpas embutidas. Nesta linha estão os discursos de “estilo de vida”, como se a base da pirâmide social de países abissalmente desiguais como o Brasil de hoje pudesse fazer escolhas de estilo de vida ‘saudáveis’, frente ao estado de pauperização e vulnerabilização a que ela foi e está sendo jogada. Como afirma, corretamente, o Rodrigo, estes discursos, com os seus formatos ‘profissionais’ disfarçados, são fundamente expressões da ideologia neoliberal que impregna nossa sociedade. A pandemia deu ainda mais visibilidade à crueldade e malignidade desse modelo. Parabéns, Rodrigo, pois você não é ‘apenas’ um psicólogo e terapeuta, mas um cidadão diferenciado e militante, e um ser político, o que lhe diferencia e lhe qualifica!
Muito obrigado pelas palavras, René. E você coloca muito bem. Estamos num tempo em que precisamos, como nunca, de cuidado e afeto. Mas precisamos nos certificar de que o nosso cuidado é, de fato, cuidado, e o nosso afeto é, de fato, afeto.
Meus caros Dr. Rodrigo F. Pereira e Dr. René Mendes. Esse debate parece ser muito importante, pois localiza e nomeia a privatização e responsabilização individualizante do cuidado de si que tende a desimplicar o poder estatal de ações públicas voltadas para o social e, especificamente, para a saúde e o bem-estar comum. São ideias que permeiam a ideologia da atual etapa do neocapitalismo extremamente desregulado que induz ao “self-made-man”, à ilusão de que é possível que homens e mulheres sejam auto-constituídos e, consequentemente, desimplicados do social e únicos culpáveis pelo seu bem-estar ou pelos seus fracassos.
A obra sobre a extensão da psicanálise, do psicólogo e psicanalista René Kaës, desde a década de 70, tem demonstrado com base nos textos freudianos que a vida psíquica apoia-se tanto na sua constituição singular quanto nos seus aportes sociais, daí a importância dos vínculos como o fundamento constitutivo e de continuidade, de permanência da própria vida psíquica singular e coletiva.
Por isso, a ilusão induzida do “self-made-man” só pode desembocar em pactos de negação da importância dos vínculos sociais (no casal, na família, nas amizades, nas relações sociais de trabalho…). Ideologia que tende a produzir sujeitos que valorizam atitudes de descaso generalizado, de ganância individualista sem limites, de cinismo, canalhice e individualismo nocivos aos vínculos estruturantes da vida psíquica. Atitudes que atacam os vínculos permanentemente, entendem o outro como inimigo rival a ser destruído sempre, num estado de urgência psíquica para saciarem seus anseios destrutivos. Sujeitos que não podem contar com vínculos de empatia, intimidade, honestidade e sinceridade com um outro, pois só oferecem desconfiança, intriga, ódio, manipulação afetiva e trapaça para levar vantagem, reprodutores da própria lógica do mercado desregulado de levar vantagem sobre o consumidor. Sujeitos em desamparo, fragilizados na sua auto-estima e no seu necessário auto-cuidado, que se defendem aderindo a ideologias dessubjetivantes e nocivas.
Por isso a enunciação do “cuide-se”, quando honesta e sincera, pode ser uma expressão de vínculo, de presença, de “concern” que é uma preocupação profunda com o outro, segundo o pediatra e psicanalista D. W. Winnicott. Permitam-me, cordialmente, então, desejar-lhes: cuidem-se, juntos!
Rodrigo, muito obrigado pelo seu comentário tão aprofundado. Acho muito interessante ver as ideias de psicanalistas que avançaram as ideias originais de Freud para novos tempos, criando novas formas de compreensão, tão necessárias. E retribuo o “cuide-se” sincero e afetuoso. Grande abraço.
Obrigada pela lucidez de sempre. É um alívio perceber que ainda há pessoas com olhos atentos. Finalmente senti que alguém entende o incômodo que eu vinha sentindo há um tempo mas que não sabia como nomear. Obrigada, mesmo.
Cuidemo-nos, na medida de nossas possibilidades. Um abraço afetuoso.
Que bom que foi útil para você, Bianca. Obrigado por ter deixado aqui a sua impressão. Um grande abraço.
Ótimo texto. Muito bem observado.
Mais uma vez, perfeito!
Obrigada 🙂