A relação terapêutica na Terapia de Aceitação e Compromisso

Um dos fatores que destaca as terapias cognitivo-comportamentais de terceira onda, como a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), é o foco que se dá à relação terapêutica. Entende-se que a relação terapêutica não é apenas fundamental para que os ganhos da terapia ocorram, mas também um instrumento terapêutico por si só, pois pode fazer com que as mudanças aconteçam na própria sessão. Por conta disso, a relação terapêutica também tem uma série de características específicas, preocupada tanto com o aspecto humano e igualitário da terapia como com a busca de melhora por parte da pessoa atendida.

Entre muitos pontos que identificam a relação terapêutica na ACT, podemos falar de alguns deles, conforme descritos pelos seus criadores¹.

Terapeuta como modelo
O objetivo da ACT é promover a flexibilidade psicológica. Para isso, são utilizadas técnicas de mindfulness, metáforas e exercícios que visam levar a pessoa atendida a mudar sua percepção do mundo e sua forma de agir nele. Entretanto, para os criadores da ACT, não basta que o terapeuta “ensine” isso para o cliente: é importante que ele mesmo busque flexibilidade psicológica e que esses elementos ocorram também durante a sessão.

Juntos no mesmo barco
A ACT pressupõe que as dificuldades que enfrentamos na vida não são anormalidades; pelo contrário, ansiedade, depressão, rigidez e medo são aspectos normais do ser humano, considerados um problema apenas na medida em que atrapalham a pessoa de viver a vida que ela escolha viver. Sendo assim, o terapeuta na ACT não é um ser superior que sabe tudo: ele, como ser humano, tem que lidar exatamente com as mesmas dificuldades que a pessoa que é atendida. Ambos travam uma aliança terapêutica em tom de igualdade. É comum, por exemplo, que o terapeuta use exemplos de sua própria vida ou fale de seus sentimentos em relação a uma dificuldade apresentada pelo cliente.

Respeito profundo pelos valores do cliente
Uma vez que a ACT enxerga muitos dos processos que nos trazem sofrimento como naturais, ela não parte de um modelo de normalidade que precisa ser aplicado a quem é atendido. A única diretriz que norteia o trabalho terapêutico são os valores do cliente, ou seja, aquilo que ele escolhe para si. Mesmo num caso de agorafobia, em que uma pessoa não sai de casa, o terapeuta só considerará isso um problema na medida em que o cliente também considerar, e não como um objetivo pré-estabelecido. Costumo comentar com as pessoas que atendo que o único questionamento que faço sobre seus comportamentos é em relação a quanto eles fazem com que a pessoa se aproxime ou se afaste dos seus próprios valores.

Humor
É comum que o humor seja usado na sessão, especialmente para abordar de forma leve a maneira como nos prendemos às armadilhas da linguagem ou dos nossos padrões de comportamento. Essa é uma forma de olhar para a situação a partir de uma posição mais observadora e talvez pensar se não se está levando um problema a sério demais. O uso do humor, entretanto, depende muito do estilo pessoal do terapeuta e também do cliente. Eu particularmente costumo ter, com alguns clientes, sessões em que rimos bastante, e sei de alguns colegas que trabalham com ACT que isso acontece com frequência também com eles.

A relação terapêutica pode ser o aspecto mais importante de uma psicoterapia, trazendo mais ganhos até do que as técnicas psicoterápicas em si. Por isso é tão importante que ela seja compreendida e valorizada tanto pelo terapeuta como pelo cliente. Na ACT, a relação terapêutica que se busca é sólida, aberta e permeada por aceitação, respeito mútuo e amor. O ideal, nessa abordagem, é que a relação entre o terapeuta e a pessoa atendida expresse a flexibilidade psicológica que se tem como meta na terapia.

Referência

  1. Steven C. Hayes, Kirk D. Strosahl e Kelly G. Wilson. Acceptance and Commitment Therapy: The process and practice of mindful change (2a. edição). 2012. Londres: The Guilford Press.

Foto: Nick Kenrick

Prender-se ao passado

Existe um problema em potencial quando olhamos para o passado para entender o presente: podemos começar a achar que melhorar o presente depende de resolver o passado. A partir dessa crença, muitos de nós tentam refazer o passado. Mas você não pode refazer o seu passado — ele já passou. (…) Se começarmos a achar que o passado está causando as nossas circunstâncias presentes, então nos posicionamos como vítimas impotentes.
Bruce Tift

Entender o próprio passado é uma parte importante do processo terapêutico. Muitos dos padrões de comportamento que apresentamos na idade adulta podem ter se estabelecido muito cedo em nossas vidas, como formas de lidar com o ambiente em que crescemos. Olhar para esse contexto da infância e da adolescência pode ser muito útil para sabermos porque agimos como agimos no presente. A partir dessa compreensão, podemos avaliar a utilidade de antigos padrões com mais clareza e menos julgamento. É bem comum percebermos que já não é mais necessário mantê-los e que, muitas vezes, é justamente a nossa incapacidade de atualizar nossas percepções e comportamentos que nos traz problemas.

Só que, como diz a citação inicial, se ficarmos presos demais ao passado, acreditando que para seguir com a vida é preciso resolvê-lo, deixamos de usar essa compreensão da nossa história para nosso benefício e permitimos que ela nos paralise, muitas vezes nos vitimizando. É muito comum ouvir, nas sessões de terapia, clientes que dizem que querem “resolver” o passado. Pergunto, então, o que eles chamam e o que eles esperam dessa resolução. Muitos acreditam que é possível simplesmente apagar as experiências passadas, os traumas, as lembranças e as sensações ligadas à própria história. E que, só então, será possível viver completamente no presente. Por isso mesmo o texto diz que se essa é a expectativa, a terapia pode durar para sempre, pois esse tipo de resolução não é possível.

É impossível “limpar” o nosso passado porque não podemos mudá-lo. O foco na terapia, então, consiste em usar a compreensão que temos dele para mudar o presente. Isso passa pela análise da relação que temos com a ideia do nosso passado, pois as memórias e a forma como o enxergamos pode ser bem enganosa. Podemos ser seletivos e buscar confirmações que fortalecem a ideia que temos de nós mesmos, podemos esquecer informações importantes. Usamos o nosso passado para podermos saber quem somos, e vale a pena questionar tanto o que pensamos do que vivemos como aquilo que pensamos que somos, especialmente quando essas duas dimensões estão ligadas.

A real forma de “resolver” o passado pode ser bastante contraintuitiva. Para podermos nos relacionar com a nossa história, nossas experiências, nossas lembranças de forma que elas nos ajudem a mudar no presente, sem nos prendermos ou nos vitimizarmos, devemos aceitar o nosso passado. Quando entendemos, sem culpar ninguém, que temos que carregar ao longo da vida as marcas daquilo que foi feito conosco, por mais injusto ou indesejado que pareça, podemos ficar em paz com boa parte de nós mesmos e ter atitudes diferentes no presente. Entendemos mais facilmente que as velhas estratégias não são mais necessárias e que podemos agir, com confiança, em relação ao agora. Como costuma ser o caso quando falamos de aceitação, aceitar o passado é liberar-se dele.

Foto: Les Haines

Mudar a si mesmo

Não são as ações dos outros que nos incomodam, e sim os nossos próprios julgamentos.
Marco Aurélio

Uma boa parte do nosso sofrimento deriva do comportamento dos outros. Quando as pessoas à nossa volta não agem da maneira que gostaríamos, nos sentimos mal. Na nossa perspectiva egocêntrica, acreditamos que se todos agissem e pensassem como nós, o mundo seria muito melhor. Uma pequena autoanálise é suficiente para deixar clara nossa arrogância em colocar sobre o outro uma expectativa criada por nós. Mas, então, como lidar com as dificuldades que enfrentamos quando nos sentimos mal com aquilo que os outros nos fazem? Vejo três posturas necessárias: parar de criar qualquer expectativa sobre o comportamento alheio;  parar de tentar mudar o outro; preocupar-se em mudar apenas a única pessoa no mundo que está sob seu controle: você.

Aceitar que as pessoas são como são, imperfeitas, e que farão e dirão coisas que você considera erradas ou até mesmo que fazem você sofrer pode parecer algo extremamente difícil. Mas vamos pensar um pouco na luta que você já travou para mudar outras pessoas: o quanto deu certo? O quanto de sofrimento essa luta gerou em você? O quanto você já se desapontou por não conseguir o resultado que esperava? Nós temos a tendência de querer educar o outro, colocá-lo no caminho certo, fazer com que ele perceba o quanto está errado. Você já parou para pensar como isso pode ser agressivo? Essa atitude deixa subentendido que você é superior, detentor da razão, do julgamento correto. Por sua vez, o outro, por não se adequar aos seus padrões, é errado, e precisa de alguma espécie de conserto, que apenas você pode oferecer.

O pior é que essa postura nos deixa presos aos erros do outro. Ao condicionar o nosso bem estar à atitude “correta” do outro, estamos colocando em outra pessoa o poder de nos controlar. Nos atendimentos que faço, já vi inúmeras vezes pessoas sofrendo porque alguém de quem elas não gostavam insistia em continuar agindo de uma forma negativa ou destrutiva. Mas, ao mesmo tempo, a própria pessoa que sofre não consegue abrir mão da perspectiva de mudar essa pessoa, sem entender que, enquanto ela se prende nisso, é ela mesma quem perpetua seu sofrimento!

Como seria se, em vez de tentar mudar o outro, você usasse o comportamento do outro que enxerga como negativo como inspiração? E se o ódio do outro lhe inspirasse a ser mais amoroso? E se a mentira do outro lhe inspirasse a dizer a verdade? E se a ignorância do outro lhe inspirasse a desenvolver a sabedoria? E se o radicalismo do outro lhe inspirasse a exercitar a tolerância?

Muitas vezes não seguimos esse caminho porque acreditamos não ser justo. Achamos que se o outro age mal, ele deve ser punido e corrigido, e nós não devemos arcar com o prejuízo causado pelas ações de outra pessoa. Pode até ser verdade, mas eu acho que essa perspectiva nos mantém divididos e estressados. Se queremos mudança e focarmos no que realmente podemos mudar — nós mesmos — talvez não precisemos julgar o que é justo ou injusto. Em vez disso, podemos limpar a sujeira feita pelo outro, cuidar do ferimento causado pelo outro, aplacar o ódio originado pelo outro.

Dessa forma, não só ficamos acima do sofrimento que pode ser causado pelo outro como sentimos que estamos resolvendo aquilo que nos incomoda. Assumimos a responsabilidade pela mudança, em vez de esperar a mudança do outro. Independentemente de ser o mais justo, acredito que essa postura mais pragmática, de mais ação e menos julgamento, pode aliviar muito a nossa angústia.

Também vejo que, paradoxalmente, quando assumimos essa responsabilidade e passamos a ser a mudança que esperamos, existe uma chance de que isso faça com que o outro mude, através do nosso modelo. Se respondemos a uma agressão com compaixão, há a chance da pessoa refletir sobre a situação e também mudar. Não devemos tomar a responsabilidade para fazer com que o outro mude, mas é algo que pode acontecer. Tomar para si a mudança que você espera no outro pode ser libertador para ambos.

Foto: mexico rosel