Se, então, a definição de alguma coisa ou evento precisa incluir a definição de seu ambiente, percebemos que qualquer coisa está tão intimamente e inseparavelmente ligada ao seu ambiente que é mais e mais difícil definir um limite claro entre a coisa e aquilo que a cerca.
Alan Watts
Embora em alguns casos eu atenda pessoas que vêm encaminhadas por psiquiatras, ou seja, que já estão em tratamento medicamentoso para alguma condição relacionada à saúde mental (depressão, ansiedade, TOC etc.), a maior parte das pessoas que eu atendo procuram a psicoterapia antes de recorrer a um tratamento médico para seu sofrimento. Nesses casos, por vezes surge a questão do tratamento medicamentoso e a discussão sobre suas vantagens e desvantagens.
Existem diversos aspectos a se considerar ao se tomar uma decisão desse tipo. O primeiro é analisar os modelos explicativos dos quadros de saúde mental a que damos o nome de transtornos, como por exemplo a depressão. Atualmente, está bastante difundida a ideia de que a depressão é um desequilíbrio químico no cérebro. Essa visão é frequentemente apresentada na mídia¹. Entretanto, essa é apenas uma hipótese, uma teoria não confirmada, mas que segue a forma que é utilizada pela medicina para explicar as doenças físicas: o modelo biomédico. Por isso, é a visão mais empregada pelos médicos e que interessa muito à indústria farmacêutica, pois justifica a administração de remédios. Na verdade, até hoje não existe nenhuma explicação consensual sobre o que causa a depressão².
Em oposição ao modelo de desequilíbrio bioquímico, existe outro, chamado de biopsicossocial. Como é indicado pelo seu nome, essa visão encara as dificuldades emocionais e comportamentais como um fruto da interação de três esferas: a biológica, a psicológica e a social. Esta visão é a mais empregada por psicólogos e outros profissionais, como sociólogos, que procuram entender a relação entre a psicopatologia e seu contexto.
Quais as implicações de se acreditar que a depressão é um desequilíbrio químico? Primeiro, desconsideram-se os fatores contextuais do modelo biopsicossocial. Ou seja, o problema está dentro do indivíduo, e não em um ambiente socioeconômico desfavorável, uma relação de trabalho abusiva, um relacionamento afetivo destrutivo etc. Além de ser o sonho da indústria farmacêutica, essa perspectiva faz com que se busque uma solução fácil e superficial para os problemas humanos, desviando-se do contexto que pode ser o real causador do problema. É mais fácil, por exemplo, que uma criança vista como agitada — e a partir disso se crie um diagnóstico de TDAH — seja medicada do que pensar nas deficiências do sistema de ensino ou no contexto familiar.
Uma outra consequência da adoção do modelo biomédico é, que se o problema que a pessoa enfrenta é um desequilíbio químico, não há muito que ela possa fazer com isso — a não ser tomar medicações. Essa visão tira do indivíduo a oportunidade de entender os seus problemas avaliando o contexto em que está inserido e agir para mudar sua vida. A medicação pode até fazer com que ele se sinta melhor enquanto ele a toma, mas os aspectos ambientais e sociais que o levaram a um estado depressivo poderão continuar lá, apenas esperando para provocar o mesmo efeito novamente. Ou seja, a medicação não resolveria as possíveis reais causas de uma depressão se não fosse combinada com uma mudança de vida, que no fundo, seria a verdadeira “cura”.
A partir desses pontos, você pode pensar que sou terminantemente contra as medicações. Não é o caso. Primeiro, porque toda essa discussão é teórica, e na prática o que existe é uma pessoa que está em sofrimento. Para essa pessoa, não importam os modelos explicativos, neurotransmissores, indústria farmacêutica. O que importa para ela é sua dor e sua vida, e essa é minha prioridade também, sendo que é isso que guia as conversas que eu e uma pessoa atendida temos sobre a questão da medicação.
Existem algumas situações em que considero que a medicação pode ser importante. Por exemplo, nos casos em que há risco claro de suicídio. Nesses momentos, a prioridade máxima é a vida, e qualquer recurso que possa ser utilizado para mantê-la deve ser empregado. São situações em que chego a ser categórico em relação à importância de fazer uma avaliação com um psiquiatra.
Outros casos são aqueles em que a pessoa está com o humor tão depressivo que mesmo sabendo o que ela precisa fazer para mudar sua vida, ela não consegue pela falta de energia. Podemos até entender que ela chegou nesse ponto porque já foi frustrada em excesso e seus esforços foram em vão, mas essa compreensão não é suficiente para fazer com que a pessoa volte a ter ânimo para as mudanças. Além disso, nas situações em que a pessoa está em sofrimento intenso e busca alívio para isso, sinto que é minha função, como terapeuta, esclarecer sobre todas as opções disponíveis, ajudando a avaliar prós e contras.
No fim das contas, a decisão, obviamente, é sempre da pessoa atendida. Embora meu trabalho se baseie numa perspectiva que integra aspectos biológicos, psicológicos e sociais, buscando uma explicação ampla e mais completa daquilo que a pessoa passa, o biológico faz parte desse entendimento e deve ser considerado, especialmente quando há grande sofrimento ou risco para a pessoa. E mesmo o modelo biopsicossocial é também apenas mais um modelo, mais uma teoria, que não deve se sobrepor à situação concreta que estamos vivenciando.
Na prática, quando a pessoa está em dúvida, costumo sugerir que ela marque uma conversa com um psiquiatra para ter mais esclarecimentos e poder decidir melhor, sem se basear apenas em uma perspectiva. Muitas pessoas que atendi se beneficiaram do trabalho conjunto entre psiquiatra e psicólogo. Se por um lado a discussão sobre transtornos mentais, suas causas e os melhores tratamentos está longe de ter um fim, o sofrimento da pessoa que procura atendimento psicológico precisa de uma resposta imediata.
Referências
1. Leo, J., & Lacasse, J. R. (2008). The media and the chemical imbalance theory of depression. Society, 45(1), 35-45.
2. Deacon, B. J. (2013). The biomedical model of mental disorder: A critical analysis of its validity, utility, and effects on psychotherapy research. Clinical Psychology Review, 33(7), 846-861.