Gratidão

Não estrague aquilo que você tem desejando o que não tem; lembre-se de que aquilo que você tem agora um dia esteve entre as coisas pelas quais você apenas esperava.
Epícuro

Todos nós queremos ser felizes. Ao longo da vida, vamos descobrindo aquilo que acreditamos que nos trará essa felicidade. Nos colocamos, então, na busca desses elementos, na esperança de que, ao alcançar essas metas, isso nos faça bem. Aquilo que elegemos como determinantes para nossa felicidade pode variar muito: um relacionamento, uma posição social, um patamar na profissão, dinheiro, ter uma família etc.

No entanto, vamos cristalizando essa maneira de enxergar as nossas vidas: há sempre algo faltando, que um dia será suprido, e só nesse dia serei feliz. A consequência disso é que, não importa o que consigamos, nosso olhar estará sempre no horizonte, acabando com qualquer chance de felicidade. Não adianta, então, perseguir aquilo que acreditamos que nos fará felizes sem que haja uma mudança interna de perspectiva. Essa mudança é cultivar a capacidade de olhar para o que há, não o que falta, e para o presente, não para o futuro.

Uma das ferramentas mais poderosas para esse fim é cultivar a gratidão. Agradecer por tudo aquilo que já existe na sua vida, a cada momento. Embora agradecer as pessoas que lhe fazem bem — e até aquelas que lhe fazem mal, pela oportunidade de desenvolver paciência e tolerância — seja algo muito benéfico, podemos ir além. Podemos agradecer, internamente, por aquilo que estamos vivendo; olhar para o momento presente e identificar quais coisas são motivo para gratidão. Se você seguir alguma religião teísta, pode agradecer a Deus; mas mesmo se não seguir, pode exercitar sua gratidão sem um direcionamento específico. Dessa forma, com o tempo, desenvolvemos o olhar para o que temos, e não para o que falta. Percebemos, ainda, que aquilo pelo que agradecemos é concreto, presente e atual; o que falta existe apenas em imaginação, nas nossas mentes.

Pode ser difícil exercitar a gratidão em momentos ruins. A dor de uma situação difícil faz com que nosso olhar fique ainda mais focado naquilo que falta, ou naquilo que perdemos. Mas, mesmo nessas situações, é possível encontrar algo pelo qual podemos ser gratos. Mesmo que estejamos na pior das condições, é possível agradecer o simples fato de se ter vida, de ter tido a oportunidade de viver. É possível agradecer até mesmo a situação difícil, pois geralmente são as crises que fazem com que nos tornemos pessoas melhores.

O cultivo da gratidão nos permite retomar o contato com as coisas pequenas e simples, muitas vezes tomadas como garantidas, que nos fazem bem. Ter alimento, água para beber, um teto, a companhia ou a amizade de outras pessoas, a capacidade de ouvir o canto de um pássaro, o raciocínio que nos permite entender o mundo… Há tanta coisa que se torna desapercebida por conta do nosso olhar acostumado que está sempre procurando algo lá longe, sem perceber que estamos sentados sobre um tesouro.

Além do cultivo à gratidão estar muito presente na maioria das tradições espirituais, há base científica para a sua relação com a felicidade. Um estudo de 2003¹ feito nos Estados Unidos mostrou que quando se encara a vida pela ótica da gratidão, o bem estar é maior. Os autores introduzem o artigo com uma citação de Charles Dickens que resume o que eles observaram — e o que este texto pretende dizer:

Reflita sobre as suas bênçãos presentes, as quais todo homem tem bastante; e não sobre os infortúnios passados, os quais todos homens têm alguns.

1. Emmons, R. A., & McCullough, M. E. (2003). Couting blessings versus burdens: An experimental investigation of gratitude and subjective well-being in daily life. Journal of Personality and Social Psychology, 84 (2), 377-389.

O que a ansiedade não é

Falamos muito sobre a ansiedade. Todos nós nos consideramos ansiosos, alguns de nós num ponto em que o sofrimento associado a ela é quase insuportável. Encaramos a ansiedade como um estado anormal, um problema a ser resolvido, partindo do pressuposto que é possível viver uma vida em que sensações negativas, como a ansiedade e o medo, não existam. É possível que a atitude que temos em relação ao “problema” da ansiedade apenas torne as coisas mais difíceis para nós. Vamos dar uma olhada em como isso acontece, listando três concepções alternativas sobre como geralmente enxergamos a ansiedade.

A ansiedade não é uma coisa

Como acreditamos que a ansiedade é uma sensação autônoma, ficamos tentando descobrir o jeito de eliminá-la, o que só nos deixa mais ansiosos.

Uma das perspectivas que nos atrapalha é acreditar que a ansiedade é uma espécie de entidade que existe por conta própria, que aparece do nada. A ansiedade, na verdade, é o nome que damos para uma sensação que está presente quando tememos o futuro e, especialmente, quando tentamos controlá-lo. Se queremos aprender a viver bem, é importante tentarmos entender a relação entre aquilo que sentimos e o que fazemos, bem como a visão que temos da nossa vida e das situações. Sendo assim, a ansiedade é uma boa oportunidade de autoanálise, com perguntas como: “do que estou com medo?”; “o que estou tentando controlar?”; “o que estou com dificuldade de aceitar?”.

A ansiedade não é anormal

Como acreditamos que a ansiedade é anormal, temos dificuldade em aceitar sua existência, o que acaba nos colocando numa espiral de ainda mais ansiedade.

Outro pressuposto contraproducente em relação à ansiedade é considerar que ela é um estado anormal. Acreditamos que existe um estado psicológico normal, em que não há ansiedade, tristeza, medo ou qualquer outra sensação negativa. E aí, quando não estamos nesse estado, acreditamos que há algo de errado conosco, que precisa ser consertado. Essa perspectiva tem muito a ver com a visão de que os problemas psicológicos negativos que temos são doenças e precisam ser curados, que é bastante questionável. Não quero dizer que eles não causem sofrimento e mereçam ser cuidados, mas podemos entender o medo, a ansiedade e a tristeza como processos psicológicos normais e naturais, que são destrutivos apenas quando acontecem em grande intensidade e desassociados de situações em que eles fazem sentido. Por exemplo, se você passa por uma grande perda, é natural que sinta tristeza, abatimento e desânimo. Isso não é anormal — anormal seria se você não sentisse nada disso!

A ansiedade não é um problema a ser resolvido

Como acreditamos que a ansiedade é um problema a ser resolvido, gastamos uma grande quantidade de energia tentando controlá-la, o que apenas piora a situação.

Não é gostoso sentir ansiedade, apreensão, medo. Como ela nos causa desconforto, procuramos maneiras de nos livrar dela, o que faz todo sentido. Só que, muitas vezes, aquilo que fazemos na tentativa de resolver a ansiedade acaba tendo o efeito contrário. Por exemplo, se eu uso uma bebida alcoólica para relaxar, o seu efeito funciona apenas por algum tempo. Depois disso, a ansiedade voltará, e provavelmente com mais intensidade, requerendo que eu faça algo a mais para tentar resolvê-la — o que no caso seria beber mais. As estratégias que geralmente usamos para controlar a ansiedade funcionam apenas a curto prazo e aprofundam o nosso sofrimento a longo prazo.

Encarando a ansiedade de outra forma

Ao enxergar a ansiedade como algo autônomo, anormal e que precisa ser eliminado, nós na verdade aumentamos a sua intensidade e passamos a viver mais e mais em função dela. Muitas pessoas que eu atendo no consultório queixam-se da ansiedade, pedindo ajuda para se livrarem dela. Eu entendo o sofrimento que a ansiedade causa e entendo a vontade de fazer com que ela simplesmente desapareça — e, se pudesse, eu ajudaria a fazer com que isso acontecesse, mas não posso. O que me leva a ter que fazer perguntas difíceis para quem eu atendo, como:
“Você se dispõe a olhar para o que a sua ansiedade diz sobre você e sua forma de viver?”
“Você se dispõe a abrir mão do controle que alimenta sua ansiedade?”
“Você se dispõe a entender que a ansiedade faz parte de ser humano e que não se pode eliminá-la totalmente, e sim aprender a conviver com ela?”
Não é fácil mudar, abrir mão e aprender a conviver com aquilo que não queremos sentir. Mas, paradoxalmente, quando escolhemos aceitar as nossas sensações, as nossas reações e a abrir mão do excesso de controle que tentamos ter — sobretudo sobre nós mesmos — passa a ser possível viver de uma forma melhor, que é justamente o que queremos, mas que na verdade sabotamos, quando tentamos controlar o que sentimos.

Reaprender a viver

As memórias não são a chave para o passado, e sim, para o futuro.
Corrie ten Boom

Quando se procura uma psicoterapia, nós geralmente estamos motivados por algum tipo de dificuldade que queremos resolver ou, pelo menos, entender. Essas dificuldades podem ter os mais variados aspectos, e costumam causar sofrimento porque ocorrem no momento atual da vida da pessoa. Entretanto, em alguns casos, descobre-se, durante a terapia, que as dificuldades atuais têm relação com aspectos anteriores da história de quem procura atendimento.

Por exemplo, é possível que uma pessoa que hoje é emocionalmente instável ou impulsiva tenha tido pais muito severos ou sofrido algum tipo de abuso — físico, psicológico ou sexual — durante a infância ou adolescência. Nem sempre as pessoas têm clareza desses episódios ou, mesmo quando têm, podem não estabelecer a relação com a situação que passaram lá atrás e a forma como elas agem hoje. Dessa forma, é possível que elas se considerem simplesmente “problemáticas” sem entender bem o porquê.

Uma criança que foi muito maltratada por pais e familiares pode não ter aprendido a lidar com suas emoções, especialmente porque os pais podem não ter tido o hábito de reconhecer e validar o que a criança sentia. Quando isso acontece durante muito tempo e num nível intenso, é comum que na idade adulta a pessoa não consiga controlar a sua raiva ou seus impulsos, o que torna dificil estabelecer e manter relações interpessoais. Isso é muito comum num quadro que se dá o nome de Transtorno de Personalidade Borderline.

Um ponto muito importante da terapia, então, é falar sobre essas experiências traumáticas. Para a pessoa que está nessa situação, entender que ela não é errada, que ela não sente tudo o que sente porque quer e que é possível se compreender de uma maneira mais ampla, é extremamente terapêutico. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, apenas falar sobre o assunto não basta. Falar sobre o assunto e se compreender não é o fim do processo: é o início.

A compreensão que adquirimos sobre nós mesmos ao entender a nossa história não faz com que mudemos automaticamente a nossa forma de agir. Ela é apenas o primeiro passo de uma mudança mais profunda, que ocorre de fato no dia a dia, na experiência. Quando nos entendemos, abrimos caminho para o processo mais longo e que significa a real mudança, que é reaprender a viver. Isso significa experimentar novas atitudes, novas percepções do mundo, novas formas de interpretar aquilo que acontece conosco. Se não aproveitamos essa chance, transformamos a compreensão que acabamos de ter em uma desculpa pelas nossas atitudes — “sou assim porque meus pais me maltratavam” — o que na verdade impede a mudança, em vez de a estimular. Ficamos presos ao passado, em vez de aproveitá-lo para transformar o nosso presente.

Quando passamos a compreender a relação da nossa história e de tudo que já passamos com o que somos hoje, temos um alívio por saber que muito daquilo que somos não é a nossa escolha, e sim o melhor que pudemos fazer a partir de um certo contexto, que pode ter sido muito negativo. Por outro lado, no momento em que temos essa consciência, passamos a ser mais responsáveis por aquilo que fazemos a partir de agora. Se entendemos como o passado nos influencia no presente, temos uma oportunidade de construir um caminho novo, mais pessoal e autêntico. E é esse o verdadeiro trabalho de quem está na terapia. Falar não basta. Aquilo que se diz no consultório é apenas um ponto de partida. A terapia se concretiza mesmo na vida real, no dia a dia, quando estamos cara a cara com as nossas dificuldades.