Seja sempre um principiante

Ser sempre um principiante é a tônica do livro Mente Zen, Mente de Principiante, de Shunryu Suzuki (clique para baixar o PDF). A frase soa estranha na nossa visão ocidental. Ser principiante, novato, inexperiente é visto como algo negativo. Tudo o que queremos é ser experts. A posição de não saber é incômoda. Queremos saber, pois acreditamos que quanto mais conhecimento temos, melhor podemos controlar um mundo ao qual nos colocamos em oposição.

Entretanto, conhecimento é diferente de sabedoria. Sabedoria tem mais a ver com a nossa postura na vida. Podem existir pessoas com muito conhecimento e pouca sabedoria, como também o contrário. Independentemente do conhecimento que se tenha, assumir a postura de principiante é, segundo Suzuki, uma atitude sábia.

Na mente do principiante não há pensamentos do tipo “eu alcancei algo”. Todos os pensamentos egocentrados limitam a vastidão da mente. Quando não alimentamos pensamento nenhum de conquista, nem pensamentos egocentrados, somos verdadeiros principiantes e podemos então aprender alguma coisa de fato. A mente do principiante é mente de compaixão. Quando nossa mente é compassiva, torna-se ilimitada.
Shunryu Suzuki

O que existe na posição de principiante que pode ser extremamente benéfico para nossa vida? Podemos pensar em alguns pontos.

Abertura

Quando estamos iniciando uma prática ou um curso, estamos extremamente abertos para o que virá. Aceitamos aquilo que nos é oferecido ou ensinado sem julgamentos ou filtros. Como seria se tivéssemos a mesma atitude frente ao que acontece na nossa vida? Se pudéssemos receber cada momento de forma aberta, buscando enxergar o que é possível aprender com ele?

Interesse

Quando somos principiantes, temos interesse naquilo que nos engajamos. Acreditamos que podemos evoluir, e que o que temos pela frente pode nos proporcionar o aprimoramento que vemos como importante. Dessa forma, não apenas aceitamos como também direcionamos a nossa atenção e energia para aquilo que é oferecido. Da mesma forma, como seria isso na nossa vida? Com que frequência nos engajamos naquilo que de fato estamos vivendo? Ou nossa energia fica demasiadamente focada naquilo que gostaríamos de estar vivendo, nas recordações do passado, ou nos anseios em relação ao futuro?

Humildade

Numa posição de principiante, não há espaço para a arrogância ou a soberba. Partimos do pressuposto que não sabemos algo, que não somos bons em determinada coisa. Com isso, podemos deixar o nosso egocentrismo de lado e olhar para o outro, para o que ele tem a nos oferecer. Há espaço para a admiração e a reverência. Não levamos a sério as nossas concepções sobre determinada coisa. Sabemos que ela é inicial e que temos muito a aprender. Estamos abertos a estarmos errados e a deixarmos para trás nossas ideias. Nos tirar do centro do universo é um exercício necessário, mas que fazemos muito pouco.

Suzuki falou em ser sempre um principiante na prática do Zen. Mas o que é o Zen senão a própria vida? Então, essa postura pode se aplicar a tudo que fazemos. Afinal de contas, estamos mesmo sempre começando: cada dia, cada hora, cada minuto é absolutamente novo. Em que medida estamos abertos para toda essa novidade? Como um ávido estudante no seu primeiro dia de aula ou como um professor mau humorado que acredita já saber tudo?

Onde estão seus problemas?

Quando você se senta no meio de seu problema o que é mais real para você? O seu problema ou você mesmo? A consciência de que você existe aqui e agora é o fato supremo.
Shunryu Suzuki

Um dia desses, meio surpreso, me dei conta de que não tinha nenhum problema. Não havia nenhuma situação a ser resolvida, nada que necessitasse a minha preocupação, ou que tirasse meu sono. Foi um bom momento, mas que, de certa forma, me intrigou. “Todo mundo tem problemas”, pensei. “Não posso ser diferente.” Passei, então, a tentar entender a que se devia aquela sensação boa e estranha ao mesmo tempo. Ao não conseguir encontrar um problema para me preocupar, senti quase como se estivesse fazendo algo de errado.

Primeiro, percebi que não havia nada de grave acontecendo na minha vida. Nada que realmente demandasse nenhuma atitude ou solução. Estava apenas vivendo na minha rotina normal. Então, de fato era um momento de calmaria. Por outro lado, mesmo a minha rotina ainda estava repleta de coisas a serem feitas ou resolvidas: as contas para pagar, e-mails para responder, tarefas para cumprir e alguns atendimentos desafiadores a serem enfrentados. Nada disso, no entanto, eu percebia como um problema; eram eventos naturais da vida, que nunca cessam. Enquanto eu estivesse vivo, teria que passar por isso. Entretanto, talvez eu não estivesse enxergando como problemas as situações que poderiam ser encaradas dessa forma.

Avaliando um pouco a mim mesmo e às pessoas que atendo, percebi que somos nós mesmos que damos esse rótulo de “problema” a diversos eventos da vida e transformamos algo que é simples em algo que demanda preocupação, ansiedade e, especialmente, uma solução. Nós mesmos nos colocamos numa situação em que só nos permitimos relaxar depois que os problemas forem resolvidos. O que acaba sendo uma armadilha, pois as dificuldades nunca deixam de surgir, especialmente se nossa mente encara tudo como um problema, até mesmo aquilo que não existe.

Se você acredita que ter que lavar louça é um problema a ser resolvido, você estará criando um problema a cada refeição. Você lavará a louça para tirar o incômodo da frente, apenas para ter um pouco de alívio até que mais pratos se acumulem sobre a pia. Por outro lado, se você enxerga a louça a ser lavada como contrapartida inseparável de uma refeição consumida, e lembra-se de que você também vive para lavar a louça, ela pode deixar de ser um problema. Mais ainda, lavar a louça pode ser um exercício de mindfulness: uma oportunidade para experimentar a sensação da água, da espuma e dos próprios movimentos.

Mas o que é realmente difícil de perceber é a nossa tendência de tornar problemas imaginários em reais. A maioria dos nossos problemas não é concreta: é apenas medo de que algo aconteça. Medo de perder o emprego, de ficar sozinho, de sofrer, de fracassar. Passamos dias e noites em claro tentando resolver mentalmente esses cenários imaginários, numa tortura sem fim. Podemos estar numa tarde fantástica, tranquila, olhando o tempo passar e sentindo o vento no rosto, mas não estar presente. Ao invés disso, podemos estar viajando com nossa mente, que nos aflige com seus infinitos “e se…”.

Para reconhecer os problemas reais, é preciso sempre voltar ao presente. Pensar: “o que está acontecendo agora?”. Se existe algo a se fazer, faça. Se não, abandone as projeções catastróficas da sua mente e se concentre no momento, naquilo que você está vendo, sentindo, e ouvindo. Foque a atenção na sua respiração e perceba que não há nada que pode abalar a sua capacidade de simplesmente viver o presente. Depois de um tempo você vai perceber como são poucos os problemas que você tem, se é que tem.

Distorções cognitivas

Uma das maiores contribuições da psicologia cognitiva foi descrever como a nossa forma de pensar ou de ver o mundo pode contribuir para o nosso bem estar ou, quando ela é negativa, para as nossas dificuldades. Distorção cognitiva é um conceito que se refere a uma forma irreal ou irracional de pensar, atrapalhando nosso funcionamento emocional, comportamental e nossas relações. As 10 distorções cognitivas mais comuns são:

1. Pensamento tudo ou nada

É uma forma polarizada de ver o mundo: ou as coisas são ótimas ou péssimas. Isso vale também para as pessoas: ou elas são boas ou más. Ao pensar de forma polarizada, não há espaço para meios-termos ou para entender que as situações são mais complexas do que essas duas categorias permitem ver.

2. Supergeneralização

Tiram-se conclusões a partir de um único evento. Por exemplo, “como fui mal nessa prova, irei mal em todas as provas desse semestre”.

3. Filtro mental

Ignoram-se as situações positivas, focando-se apenas nas negativas. Um detalhe negativo pode fazer com que uma situação que foi, no geral, positiva, seja vista como negativa.

4. Desconsiderar o positivo

Acreditar que os aspectos positivos ou qualidades “não contam”. Junto com o filtro mental, reflete uma autoestima baixa quando acontece com frequência. É comum que pessoas que se avaliam muito duramente se apeguem a uma crítica que receberam, mesmo que tenham recebido 20 elogios na mesma situação.

5. Conclusões precipitadas

Tiram-se conclusões precipitadamente, a partir de um evento sem levar em consideração todas as possibilidades. Por exemplo, se uma pessoa nos dá uma resposta atravessada, já pensamos “ela não gosta de mim”, sem pensar nos diversos fatores que podem levar a pessoa a agir dessa forma.

6. Catastrofização

Pensa-se sempre que uma coisa terrível vai acontecer, a partir de um evento muito pequeno. Por exemplo, uma pessoa que comete um erro simples no trabalho e acredita que vai ser mandada embora ou alguém que pensa que está gravemente doente quando o que tem é apenas um resfriado.

7. Raciocínio emocional

Acreditar que as emoções que sentimos determinam a realidade de uma situação. Por exemplo, “sinto-me um idiota, então devo mesmo ser um”.

8. Pensamentos “tenho que”

Nossos pensamentos e nosso discurso é permeado por ordens: “eu deveria ser diferente”, “eu tenho que fazer isso”, “fulano precisa fazer aquilo”. Tudo é visto como uma obrigação ou uma tarefa.

9. Rotulação

Em vez de avaliar as ações ou situações, a pessoa se atribui um rótulo a partir delas. Por exemplo, ao cometer um erro, ela diz “sou um incompetente” ou “sou um perdedor”, em vez de pensar “essa minha atitude foi errada”.

10. Personalização

Acreditar que tudo que acontece tem a ver com a gente. Por exemplo, ao receber uma fechada no trânsito, levamos como uma ofensa pessoal. Também se refere a imaginar que temos controle e culpa sobre tudo, mesmo com coisas que claramente não têm a ver conosco ou nao são inteiramente nossa responsabilidade: “se eu fosse uma esposa melhor meu marido não estaria em depressão”.

Lidar com as distorções cognitivas é importante porque a maneira como vemos o mundo contribui bastante para nosso estado emocional. Se enxergamos todas as situações como nossa culpa, se nos julgamos mal por conta de um erro ou se ficamos presos demais na forma como acreditamos que as coisas fossem, é muito difícil viver bem. Embora mudar a forma de pensar a fim de não distorcer a realidade seja uma tarefa difícil, uma das coisas que você pode fazer desde já para iniciar esse processo é prestar atenção nos seus pensamentos e nas suas avaliações. Será que eles se encaixam nas categorias listadas acima? Simplesmente perceber que estamos pensando de uma forma distorcida já é meio caminho percorrido em direção a uma relação mais saudável com o mundo e com nós mesmos.

Referências
Burns, D. D. (1980). Feeling good: The new mood therapy. New York: William Morrow & Company.
Grohol, J. (2009). 15 Common Cognitive Distortions. Psych Central. Retrieved on February 17, 2014, from http://psychcentral.com/lib/15-common-cognitive-distortions/0002153