Autoridade e liberdade na psicoterapia

Todo o sistema de treinamento educacional e profissional é um filtro muito elaborado, que elimina as pessoas que são muito independentes, as que pensam por si mesmas, as que não sabem como ser submissas, e por aí vai — porque, para as instituições, elas são disfuncionais.
— Noam Chomsky

Nossa sociedade é baseada em relações de autoridade. Temos uma lista longa das figuras que representam essas relações: policiais, políticos, juízes, professores, chefes, sacerdotes. Esses profissionais são figuras de autoridade porque, em alguma medida, têm algum tipo de poder sobre outras pessoas.  Na área da saúde, as autoridades são os médicos, enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, nutricionistas. Em tese, o propósito dessa autoridade é garantir que tanto indivíduos quanto a comunidade como um todo sejam saudáveis, se submetendo a diagnósticos, tratamentos, vacinas e outros procedimentos.

Entretanto, na saúde mental, temos especificidades que tornam a relação entre profissional e paciente bem mais complexa. Transtornos mentais não possuem marcadores biológicos. Eles não podem ser identificados em exames laboratoriais ou de imagem. O diagnóstico é baseado no relato e no comportamento do paciente e na avaliação subjetiva do profissional. Isso permite que fatores morais e sociais sejam disfarçados de medidas de saúde e influenciem nas decisões sobre tratamento.

No caso da psicoterapia, uma relação baseada em autoridade dificulta os resultados terapêuticos e tira da pessoa atendida aspectos essenciais para sua existência plena, como autonomia e liberdade. Para garantir que a pessoa em atendimento seja totalmente respeitada, seria necessário partir de alguns pressupostos.

1. A pessoa atendida é o centro dos esforços terapêuticos

Em outras palavras, são os seus direcionamentos e decisões que norteiam o processo terapêutico. O terapeuta contribui com seu conhecimento, seu treinamento e seu olhar externo para que a pessoa possa exercer sua liberdade com consciência e clareza, inclusive sobre a própria terapia.

Isso significa que ela deve ter todas as informações sobre a forma de trabalho do terapeuta, técnicas e procedimentos, além das questões éticas, como sigilo e outros direitos. A partir dessas informações, a pessoa atendida é livre para recusar de qualquer procedimento, bem como discordar de posições ou interpretações do terapeuta sem ser rotulada como “resistente” ou pouco colaborativa. Ela não deve ser coagida a dar informações que não deseja ou falar de assuntos incômodos sem desejar. Ela também pode reclamar do atendimento sempre que se sentir prejudicada. A pessoa atendida tem a liberdade de interromper a terapia a qualquer momento, a partir do seu próprio julgamento, sem justificativas.

2. A pessoa atendida pode discordar de seu diagnóstico

Os diagnósticos podem ser úteis na comunicação entre profissionais de saúde e na descrição de certos padrões que podem facilitar a abordagem terapêutica. Entretanto, diagnósticos também podem estigmatizar e classificar as pessoas atendidas. Considerando que, em saúde mental, eles são apenas classificações conceituais, a pessoa atendida é livre para refutá-los, desconsiderá-los ou recusar tratamentos baseados em diagnósticos.

A lógica aplicada para diagnósticos também pode ser aplicada a avaliações e julgamentos “clínicos” em menor escala. Muitas vezes, as pessoas atendidas — ou seus comportamentos — são rotuladas como “disfuncionais”, “desadaptativas”, “transtornadas”, “patológicas” e por aí vai. Contudo, essas avaliações, via de regra, seguem preceitos de normalidade ditados por figuras de autoridade — os “especialistas” — e não pela própria pessoa atendida. Esta, então, é livre para não aceitar nenhum rótulo baseado em critérios com os quais não concorde.

3. Conflitos de interesse devem estar claros

A terapia deve atender aos interesses da pessoa atendida e apenas aos dela. Isso quer dizer que pessoas, instituições ou agentes externos não devem influenciar, controlar ou determinar qualquer aspecto da psicoterapia. No caso de terapias que ocorrem dentro de instituições, o terapeuta deve ao máximo agir em prol dos interesses da pessoa atendida. Caso isso seja impossível, informar a pessoa atendida dos conflitos de interesse existentes, bem como o impacto disso no trabalho terapêutico, para que ela possa decidir de forma esclarecida se participará ou não do atendimento. Caso ela opte por não participar, essa vontade deve ser respeitada e a pessoa não deve ser coagida a ingressar em tratamento.

4. A liberdade vale para os dois lados

O foco deste texto está na liberdade da pessoa atendida por considerar que, usualmente, ela está numa posição de vulnerabilidade, enquanto o terapeuta está numa posição de autoridade, o que pode criar uma relação desigual. Entretanto, o ideal é que a terapia seja uma relação acordada e consensual entre pessoas equânimes, cada uma tendo suas liberdades respeitadas. O fato de a pessoa atendida estar em uma posição de sofrimento e de busca por ajuda não quer dizer que ela seja um lado “inferior” da relação. Da parte do terapeuta, isso implica que ele também tem a liberdade de se recusar ao trabalho terapêutico por qualquer motivo, como ao sentir que não tem condições de desenvolver o processo desejado na psicoterapia. Nesses casos, deve tomar os devidos cuidados para que a pessoa atendida tenha opções para receber suporte emocional e psicológico.

5. Situações extremas

Podem existir situações extremas, como tentativas de suicídio e episódios de surtos em que a pessoa em atendimento pode oferecer grave risco a si mesma ou outras pessoas. Nesses casos, as autoridades médicas agirão para preservar a vida da pessoa, muitas vezes com limitações à sua liberdade. Mesmo nesses casos, cabe ao psicoterapeuta manter a postura de respeitar e informar a pessoa atendida sobre todos os procedimentos envolvidos e seus direitos, para que ela tenha o máximo de conhecimento e esclarecimento sobre o que está sendo feito com elas. Qualquer restrição de liberdade deve durar apenas o necessário para que a pessoa se estabilize, respeitando a sua vontade.

“Meus problemas acabaram”

Como o home office mostra que pessoas consideradas transtornadas mentalmente podem ter apenas um problema: o ambiente de trabalho.

Desde o início da pandemia, tenho realizado meus atendimentos online. Dessa forma, tem sido possível acompanhar diversas pessoas passando por esse momento e notar quais os impactos psicológicos da epidemia sobre cada pessoa. Parecem existir algumas tendências, como a que percebo naqueles que continuam trabalhando via home office.

Para contextualizar: um dos meus maiores interesses de estudo é entender o que é exatamente aquilo que chamamos de “transtorno mental”. Recentemente, venho observando que muitos dos problemas mentais são apenas reflexos de aspectos sociais e culturais que são “privatizados”, ou seja, atribuídos ao indivíduo, como se ele fosse problemático independentemente dos seus contextos de vida. E um dos contextos mais nocivos nos quais estamos inseridos é o do trabalho e seu ambiente, o que para mim ficou ainda mais evidente durante essa pandemia.

Júlia*, de 34 anos, tem um cargo de gerência numa empresa multinacional. Ela precisa se deslocar diariamente dezenas de quilômetros, de transporte público, para o seu emprego. Embora sua relação com os colegas e sua chefe direta seja boa, ela precisa conviver com um superior hierárquico que incorpora todos os atributos do mau chefe: abuso, incoerência e às vezes simples crueldade. Há algumas semanas trabalhando de casa, Júlia parece muito diferente nas sessões. Calma, serena e bem-humorada, ela fala com mais leveza das suas atividades diárias. Não ter que se deslocar nem conviver com as pessoas que a desagradam tiraram boa parte da pressão sobre si. Consequentemente, boa parte dos ‘sintomas’ que ela apresentava e justificavam não só o atendimento psicológico como o tratamento psiquiátrico desapareceram. “Parece que os problemas acabaram”, concluímos em uma das sessões.

Milton, 50, segue na mesma linha. Diretor de uma empresa também com operações no Brasil e fora dele, ele relata que o volume de trabalho não mudou no home office. Porém, não precisar estar no trânsito diariamente e também não ter que conviver com colegas competitivos e nocivos — como é tão comum em níveis hierárquicos mais altos — fizeram com que ele se sentisse muito melhor nos últimos tempos. Também faz diferença o fato de poder estar mais perto de sua família, podendo interagir com esposa e filha nos intervalos que se dá ao longo do dia. Ele nota melhoras não só na forma como se sente, mas também na sua saúde física, que já esteve bem debilitada nos momentos de maior angústia dentro da empresa.

Esses dois exemplos colocam em xeque a postura das disciplinas de saúde mental (como psicologia e psiquiatria): na melhor das hipóteses, nosso trabalho é um paliativo para ajudar as pessoas a tolerarem um mundo intolerável — um mundo em que as pessoas levam horas para chegar num lugar em que não querem estar e ficar por lá ainda mais horas, apenas para sobreviver. Na pior das hipóteses, tentamos forçar o indivíduo a se adaptar e a se conformar com esse mundo, o que, obviamente, traz resultados ainda piores e cria um grande ressentimento das pessoas frente a essas disciplinas e seus profissionais.

Se quisermos fazer uma real diferença, precisamos deixar de olhar para as pessoas como se elas fossem problemáticas e entender que “transtornos” mentais são apenas reações totalmente compreensíveis frente a um mundo opressor e desumanizado. Ficar buscando causas internas para o sofrimento, nesses casos, é trazer ainda mais angústia.

A alternativa é a compreensão de que não há nada de errado com elas, e, sim, com os contextos em que vivemos, trazendo consciência não só sobre si, mas sobre a nossa sociedade e nossa cultura. Mais do que isso, é preciso entender que estigmatizar e castigar as pessoas pelas suas dificuldades numa sociedade doente é culpar a vítima. Nos dois exemplos que citei, é possível perceber que não precisamos de mais terapia e mais remédios; precisamos de menos trabalho, menos controle, menos tarefas sem sentido e mais tempo, mais contato com quem amamos e mais liberdade.

*Nomes fictícios

Foto: Lily Banse.

A liberdade no “eu não sei”

Na mente do principiante existem muitas possibilidades, mas na do expert há poucas.
Shunryu Suzuki

Fiz todas as minhas etapas da pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado) no Instituto de Psicologia da USP. Éramos um grupo de pesquisa bastante competitivo — interna e externamente. Uma das principais regras implícitas nas aulas e nas reuniões de equipe é que, numa instituição desse porte e num grupo tão produtivo, não existia espaço para se dizer “eu não sei”. Toda pergunta deveria ter uma resposta, e não as ter significava receber uma avaliação negativa dos pares e dos professores.

Só notei que eu continuava funcionando de acordo com essa regra depois de já ter concluído meus projetos e estar longe da instituição por um tempo. Percebi que ainda me sentia na obrigação de ter uma boa resposta para tudo que me perguntavam, em especial nos meus atendimentos. Mesmo perguntas complicadas como “o que você acha que está acontecendo comigo?”, “você acha que eu posso melhorar?” ou “quanto tempo até que eu veja algum resultado da terapia?” eram respondidas com algum tipo de explicação que buscava dizer o que a pessoa queria ouvir. Se eu não desse essa resposta, a pessoa, além de se decepcionar, poderia descobrir que eu era uma fraude. Eu tinha que dar uma resposta.

Em algum momento me dei conta disso e, gradualmente, passei a assumir a minha ignorância e incapacidade de responder coisas irrespondíveis — e outras respondíveis, mas que eu só não sabia mesmo. Comecei a dizer “eu não sei” e, para minha surpresa, isso foi extremamente libertador. Mesmo em situações em que o “eu não sei” poderia significar perder uma pessoa que buscava atendimento ou decepcionar alguém, no fim a sensação de não ter me enrolado tentando dar uma resposta falsa compensava a perda. A pessoa estava me vendo pelo que eu era e podia pensar o que quisesse; de alguma forma, a vida continuava.

Animado com esse desprendimento, passei a ir mais longe. Comecei a admitir para as pessoas que atendo que, em alguns momentos, não faço ideia do que estou fazendo como terapeuta. Nas aulas que dou, falo dos casos que não deram certo — os que dão certo existem aos montes nos livros. Digo para pessoas que querem que eu seja um tipo de terapeuta que não bate com meu perfil que não consigo ser aquilo que elas precisam. Comento com pessoas em impasses nos atendimentos que já não sei mais o que fazer de diferente com elas.

As consequências dessa postura foram ainda mais marcantes. Não era só eu que me sentia melhor ao ser honesto sobre meus conhecimentos ou capacidades; as pessoas com quem estava trabalhando em consultório ou aulas se sentiam extremamente aliviadas e reconfortadas com essa honestidade. A resposta segue um padrão, que não é de julgamento, e sim de empatia e autocompaixão: “bom, se você que é o psicólogo/professor/doutor não sabe, então tudo bem eu não saber também”. Cheguei a perceber alunos literalmente suspirando de alívio quando eu apresentava, nas aulas, meus fracassos terapêuticos. Muito mais relevante do que uma tonelada de conhecimento era mostrar que alguém que está numa posição em que deveria ter todas as respostas era tão “imperfeito” e vulnerável como eles.

Vivemos num mundo em que se fala constantemente de excelência, produtividade, aperfeiçoamento, resiliência. Nenhum desses aspectos é de fato uma receita para uma vida melhor (independentemente do que se ouça nos meios acadêmicos e corporativos). Nesse contexto, há muito pouco espaço para que a nossa humanidade apareça. Conseguir conviver bem com o que se é, com o que se sabe ou não num determinado momento, é mais importante para a vida do que ter todas as respostas.

 

Foto: Frank Mckenna