Numa recente reunião clínica com os colegas psicólogos do Núcleo Interface, falamos sobre alimentação, obesidade, transtornos alimentares e a relação que temos com o nosso corpo. O tema foi escolhido por estar presente em muitos dos atendimentos que fazemos na clínica e também nas nossas vidas pessoais. A questão do corpo pode trazer uma grande dose de sofrimento para muitas pessoas da nossa época, e a forma de lidar com esse sofrimento pode levar a quadros de grande risco, como a anorexia nervosa. Mesmo quando não se chega nesse extremo, é difícil pensar em alguém que nunca tenha tido dilemas com a imagem corporal ou a alimentação.
Nosso sofrimento parece se iniciar quando percebemos uma discrepância entre o que nosso corpo é e o que achamos que ele deveria ser. Esse “deveria ser” é o corpo idealizado que construímos mentalmente a partir de expectativas externas, exigências de familiares, imagens da mídia e das redes sociais ou até mesmo da comparação com amigos e conhecidos. Ao notar essa diferença, sofremos. E cada um de nós tem as próprias estratégias para reagir a esse sofrimento.
Uma dessas estratégias, que torna o problema um círculo vicioso, é comer. É muito comum que comamos quando estamos ansiosos, tristes ou estressados. E, nesses momentos, não comemos uma salada ou uma castanha. Comemos doces, pães, massas e outros alimentos ricos em carboidratos, que geram um pico glicêmico associado a uma sensação de prazer e alívio de sensações incômodas. Entretanto, esse alívio geralmente dura pouco. Logo nos sentimos mal novamente, e agora culpados por termos comido. Podemos reagir a isso tentando compensar essa culpa com exercícios excessivos ou purgação ― o que caracterizaria um quadro de bulimia ― ou voltando a comer para ter um novo alívio temporário ― o que inevitavelmente levaria à obesidade ou até a um quadro de compulsão alimentar.
Outra forma de tentar lidar com a discrepância entre o corpo ideal e o corpo real é tentar forçar o corpo a ser aquilo que desejamos. Através de dietas, exercícios físicos ou até cirurgias plásticas, tentamos fazer com que a realidade se adeque ao modo que acreditamos que ela deve ser. Pensamos que, se conseguirmos fazer com que as coisas sejam do jeito que queremos, nosso sofrimento desaparecerá. Não raramente, achamos que outras coisas se resolverão automaticamente se tivermos o corpo ideal: nossos problemas de relacionamento, dificuldades familiares ou profissionais. É comum nos obcecarmos com o controle do corpo ao nos depararmos com a falta de controle em outras áreas das nossas vidas.
O problema é que tentar adequar a realidade a um ideal construído mentalmente pode não ter fim. Primeiro, porque não temos tanto controle assim sobre nossos corpos. A forma como ele armazena gordura, a nossa altura, a cor dos nossos olhos, a nossa estrutura óssea, tudo isso está fora do nosso alcance. Segundo, porque se nossa mente está sempre presa a um ideal, é possível que, ainda que atinjamos esse ideal, ela desloque esse objetivo para um novo estado, nos colocando em novo sofrimento. É a nossa eterna insatisfação.
Isso não significa que não temos saída e que apenas nos resta desistirmos de uma relação diferente com o nosso corpo. O que podemos fazer é direcionar a nossa atenção mais para os processos e menos para os resultados: abandonar a ideia de um corpo ideal a ser atingido e direcionar o nosso foco para a forma como queremos viver, entendendo que o nosso corpo refletirá essa escolha. Nessa perspectiva, é possível desenvolver uma relação de cuidado e aceitação com nós mesmos. Podemos, por exemplo, ter uma proposta de nos alimentarmos de forma saudável; atender eventuais desejos por doces ou outros alimentos prazerosos; praticar comer com mindfulness; ter uma rotina equilibrada e gostosa de atividades físicas. Ou seja, atentar aos nossos hábitos ― que é o que de fato está sob nosso controle ― e aceitar o corpo decorrente desses hábitos.
Em vez de escolhermos ter um corpo perfeito, podemos escolher viver bem, de maneira leve e equilibrada, sem rigidez ou exigências agressivas com nós mesmos. Com isso, eliminamos a idealização e vivemos na realidade do possível, de como queremos viver o processo de nos alimentar e nos exercitar, apreciando o corpo que estará condizente com aquilo que escolhemos para as nossas vidas.
Foto: Scott Webb