Em 1960, Thomaz Szasz iniciou uma discussão que permanece extremamente atual. Ele publicou um artigo (que em seguida se tornou um livro) chamado de “O Mito da Doença Mental”. Para o autor, problemas sociais começaram a ser apropriados pelo campo da saúde, e a discrepância entre o comportamento de um indivíduo e o que é esperado dele socialmente passou a ser considerada uma doença. Szasz aponta que muitos dos diagnósticos no campo da saúde mental não tinham — como continuam não tendo — um marcador biológico, ou seja, uma alteração anatômica ou fisiológica que mostrasse sua existência. Os diagnósticos, na saúde mental, não são feitos a partir de exames laboratoriais, e sim a partir do relato da própria pessoa ou de observadores. Para ele, isso possibilitou à medicina a apropriação de questões que estavam antes no campo social, educacional ou espiritual.
A partir dessa visão estritamente médica de certos tipos de comportamento, surgiram tratamentos que visavam ajustar o comportamento da pessoa, seja através de medicamentos ou de terapias, como a psicoterapia. Nos anos 70 eram aplicadas terapias aversivas para “corrigir” condutas tidas como desviantes — inclusive no campo sexual — usando, muitas vezes, técnicas de condicionamento aversivo. Quem determinava que um comportamento era inadequado era a autoridade médica, muitas vezes contra a compreensão da própria pessoa.
Isso parece extremamente antiquado e agressivo, mas continua acontecendo, ainda que de maneiras mais sutis. Pense, por exemplo, numa criança que não se ajusta ao ambiente escolar por ter um comportamento muito expansivo ou eloquente. É bem frequente que nesses casos a escola solicite à família que a criança seja encaminhada a um psicólogo, para que a criança seja “tratada”, ou seja, que tenha um comportamento mais condizente com o que é o visto como adequado pela escola.
É muito menos comum que uma criança que tenha dificuldades internalizantes, ou seja, voltados para dentro, como uma criança em estado deprimido por uma situação de bullying, receba a mesma atenção. Isso porque essa criança não atrapalha o ambiente escolar como uma outra que seja expansiva, portanto não é vista como “problemática”. E, no momento em que o bullying é detectado, é comum que seja a vítima a ser encaminhada para a terapia, sem nenhuma consideração sobre os problemas do contexto. É como se a dificuldade fosse exclusiva de quem sofre bullying, não do agressor, ou pior, do ambiente escolar que não consegue lidar com a situação.
Isso continua na idade adulta. Já atendi inúmeros casos de pessoas em processos de esgotamento por um ambiente de trabalho pouco salutar, com excesso de funções, assédio moral, pouco reconhecimento e retorno financeiro. Nesses casos, a atitude é a mesma: a pessoa “deprimida” recebe indicação de tratamento, como se tivesse que se “consertar” para funcionar num ambiente insalubre, muitas vezes com o uso de medicamentos.
Tanto no exemplo da escola como na do trabalho, enxerga-se como “cura” um funcionamento que esteja totalmente de acordo com as demandas do ambiente (escola, trabalho, família), sem se questionar quão pouco saudáveis essas demandas possam ser.
Algumas propostas de psicoterapia podem corroborar com essa ideia, enxergando o indivíduo como disfuncional e problemático, dissociando a pessoa do contexto. Mais do que isso, aplicando um conceito do que seria uma forma de comportamento ideal que não é a da pessoa atendida, e sim da escola, da empresa, dos pais etc. Nesses casos, a psicoterapia não está a serviço da pessoa atendida, e sim de um terceiro.
Para que uma psicoterapia possa realmente promover mudanças saudáveis e o cultivo de uma vida significativa para a pessoa atendida, é preciso que os objetivos sejam definidos pela própria pessoa. Visa-se, sim, o bom funcionamento da pessoa em seus contextos, mas a partir de seus próprios valores e daquilo que ela enxerga como relevante para si e para a forma como ela quer tratar a si mesma e aos outros. Do contrário, a psicoterapia pode ser tornar um instrumento que promove mais sofrimento, incompreensão e injustiça.
Referência
Szasz, T. S. (1960). The myth of mental illness. American psychologist, 15(2), 113.
Foto de Louis Blythe.
Muito bem escrito, prezado Rodrigo! Parabéns!
Sem a mesma autoridade que você tem, como psicólogo qualificado e professor, ‘assino’ em baixo!
René Mendes.
Muito obrigado pela leitura, René. Se tem o seu aval, fico tranquilo. Abraço.