O copo quebrado

Conta-se uma história sobre o monge budista Ajah Chah, que teria um certo apego a um copo específico, do qual ele gostava de beber. Sendo um dos ensinamentos do budismo a o desapego, seus alunos o questionaram em relação a esse apreço a algo tão material quanto uma taça. O mestre respondeu:

É verdade, eu gosto desse copo. Gosto como ele contém meu chá. Admiro a forma como o sol brilha através dele, sempre criando arco-íris. É o meu copo favorito, mas eu não me apego a ele, porque para mim esse copo já está quebrado. Eu sei que meu tempo com ele é temporário e precioso. Então eu aproveito esse copo enquanto ele dura, pois estou totalmente consciente de que eventualmente ele vai cair da prateleira ou ser derrubado e quebrar. E quando isso acontecer, eu direi: “é claro”.

Quando pensamos na ideia de impermanência, é muito comum que caiamos numa perspectiva niilista de que “se tudo passa e acaba, então nada vale a pena”. A beleza dessa história é a de mostrar que, ao entendermos que tudo passa, podemos ter a postura oposta, valorizando e aproveitando cada momento que temos.

Se pensarmos que as coisas que temos já estão quebradas, os empregos já perdidos, os relacionamentos terminados e as pessoas – inclusive nós mesmos – mortas, perceberemos cada momento em que isso ainda não aconteceu como precioso. E, quando as inevitáveis mudanças surgem, as enxergamos com naturalidade e serenidade.

Foto: Todd Cravens

Por que não consigo ser o que gostaria?

Muitos dos nossos problemas vêm da ideia de que podemos controlar perfeitamente a nós mesmos. Mas basta tentar fazer uma dieta, entrar num programa de exercícios ou até mesmo tentar finalizar uma tarefa num prazo curto para ver que as coisas não são tão simples assim. Nós não podemos nos controlar da maneira que acreditamos que podemos. Ainda assim, continuamos tentando, imaginando que apenas não estamos fazendo isso da maneira certa — ou com a intensidade suficiente.

De onde vem a ideia de que podemos nos controlar tanto? É possível que isso esteja impregnado na nossa cultura. Na tradição judaico-cristã, a mensagem é de que devemos ser capazes de controlar até mesmo nossos pensamentos — se não o fizermos, estaremos pecando. Podemos ouvir de pais e professores sobre como devemos agir de uma maneira ou outra, ou até mesmo o que devemos, ou não, sentir. Quando olhamos à volta, podemos ver pessoas que têm imensa disciplina para algumas atividades e nos perguntamos por que não conseguimos ser como elas.

Como psicoterapeuta, percebo que uma grande parte das pessoas que me procura vem com uma grande questão: “por que não consigo fazer aquilo que sei que é o melhor para mim?” Por que não conseguimos parar de fumar, beber, comer demais ou sair daquele relacionamento abusivo, mesmo quando sabemos o quanto tudo isso é ruim?

O problema nesse momento é que as pessoas nem sempre tentam entender de fato a sua situação. Elas apenas se condenam por continuarem fazendo aquilo que decidiram que é “errado”. No momento que elas olham com mais serenidade e compaixão, percebem que, se nos mantemos em alguma situação “ruim”, é porque temos ganhos. Podemos ter prazer em fumar, beber ou comer. Um relacionamento abusivo pode trazer, além de todos os aspectos negativos, emoções e prazeres fortes, ainda que momentâneos. E mudar significa abrir mão, passar por vontades, lidar com a perda: é comum ficarmos numa situação ruim só por não querermos passar por isso.

Quando não percebemos esses fatores, ficamos apenas num grande conflito: nossa mente dizendo o que devemos fazer e a nossa incapacidade de atender a nossa própria expectativa. Não é raro que nos perceber nesse conflito faça com que nos sintamos ainda piores conosco e nos engajemos ainda mais nos nossos vícios. Além do sofrimento da situação em si, adicionamos o sofrimento de não conseguirmos ser aquilo que esperamos.

Não existe uma fórmula mágica para a mudança. O “como” da mudança é a parte mais difícil. Quando uma pessoa que atendo relata alguma mudança significativa em sua vida, eu costumo indagar com genuína curiosidade: “como você fez isso?”. As respostas são as mais variadas e nem sempre a pessoa realmente sabe como fez. O que me leva invariavelmente a uma sensação de encantamento ao perceber como nós somos influenciados por um infinito de variáveis e podemos mudar sem nem mesmo saber por quê. É uma clara demonstração de como muito pouco está sob controle da nossa estreita consciência — ainda que ela, em sua ilusão de onipotência, ache que pode controlar tudo.

O que acho possível trabalhar em terapia, então, mais do que o “como” da mudança, é a expectativa de controle. A ilusão de que basta ter uma frase em mente para que o nosso comportamento siga naquela direção é algo que, além de inútil, faz mais mal do que bem. A psicoterapia de algumas pessoas que já atendi não foi para frente por conta desse impasse: elas queriam conseguir que esse autocontrole fosse efetivo, e esperavam minha ajuda para isso. Eu, obviamente, não consegui ajudá-las dessa maneira e o processo se interrompeu.

É possível que o autocontrole funcione, por um tempo. Mas quando a pessoa está se forçando a uma certa atitude, manter esse estado traz grande sofrimento, e logo ela retorna ao seu estado anterior, o que ela encarará como um “fracasso”. Por outro lado, para muitas pessoas que conseguiram abandonar a expectativa de autocontrole, esse foi, paradoxalmente, um passo importante para ser diferente de uma maneira mais natural e positiva. Conseguir estar bem com o que se é num determinado momento pode ser uma mudança maior do que se forçar na direção de um comportamento idealizado. A autoaceitação e compreensão de si são ferramentas muito mais poderosas do que a autocobrança. Parece que a máxima de Carl Rogers, “quando aceito a mim mesmo como sou, posso mudar”, continua fazendo sentido.

 

Foto: Alexandre Chambon

As limitações do mindfulness ocidental

As práticas de mindfulness têm recebido muito destaque como um meio de solucionar diversos problemas psicológicos, trazer bem-estar e felicidade. Temos visto o emprego de técnicas de meditação e desenvolvimento de atenção plena — um sinônimo de mindfulness — em centros de saúde, empresas, escolas e até presídios. O mindfulness tem sido encarado como uma panaceia, a partir das melhoras que podemos observar nas nossas próprias vidas quando começamos a praticá-lo. Entretanto, o que a ciência tem dito a respeito?

Uma meta-análise — uma pesquisa que reúne diversas pesquisas — realizada em 20131 mostrou que programas de tratamento baseados em mindfulness foram efetivos para melhorar sintomas de ansiedade, depressão e estresse. Entretanto, o programa de mindfulness não foi melhor do que a terapia convencional ou tratamento medicamentoso. Outra meta-análise, dessa fez feita em 20142, também chegou a resultados semelhantes para depressão e ansiedade, mas não para estresse. Os pesquisadores também investigaram efeitos sobre a qualidade de vida no geral e outros aspectos, como sono e alimentação, não encontrando evidências, até esse momento, de impacto nessas áreas. Em termos científicos, mostra que a prática é uma alternativa a se considerar para reduzir os sintomas de alguns quadros, mas está longe de ser uma solução milagrosa para tudo.

Pior, um estudo de 20143 mostrou que praticar meditação antes de entrar numa negociação faz com que as pessoas obtenham resultados piores nessa negociação do que pessoas que não meditaram. Esse resultado pode nos colocar uma pulga atrás da orelha: seria possível que as companhias utilizassem as práticas de mindfulness para terem empregados mais passivos e subservientes? E por que as práticas de mindfulness, que associamos com a felicidade — o monge budista Matthieu Ricard foi denominado “o homem mais feliz do mundo” — não estão nos tornando pessoas mais felizes?

Uma resposta possível estaria no fato da cultura ocidental ter se apropriado da atenção plena extirpando-a do seu contexto cultural e moral. O mindfulness vem sendo divulgado como um fim em si mesmo. Removida do seu contexto espiritual, muitas vezes ela é vista apenas como um “prestar atenção” ao fazer as coisas ou manter a mente no presente. Na nossa perspectiva ocidental, muito voltada à resolução de problemas e pouco voltada à contemplação, as práticas de meditação podem ser vistas como mais uma ferramenta para um determinado objetivo, o que não promove uma mudança de perspectiva profunda.

Entretanto, quando pensamos no contexto budista, percebemos que a atenção plena é muito mais do que um simples prestar atenção. A ideia do mindfulness é lembrar-se e utilizar a atenção plena a fim de entender melhor o próprio sofrimento, para que se possa avaliar as suas causas e entender quais escolhas estão contribuindo para o nosso sofrer. Thich Nhat Hanh4 fala sobre os alimentos mentais, e como aquilo que consumimos pode nos fazer mal. Somente com atenção plena podemos fazer escolhas melhores a cada momento em relação ao que estamos consumindo.

No budismo, não existe apenas o conceito de atenção plena, mas também de atenção plena correta, ou seja, parte de uma prática para realmente lidar profundamente com a questão do sofrimento. A atenção plena está inserida num amplo contexto espiritual e moral, associada a conceitos como compaixão e sabedoria. Para se viver melhor, não basta prestar atenção; existe um caminho que envolve aquilo que se diz, o que se faz e até como se pensa.

Falar de práticas de mindfulness fora desse contexto é quase como sugerir a uma pessoa que não é cristã que ela deve usar a oração para melhorar seus sintomas de ansiedade e depressão. Pode até ser que a prática em si traga algum benefício, mas ela estará apenas raspando a superfície de tudo aquilo que ela representa e oferece no seu contexto original.

A nossa apropriação de filosofias orientais é seletiva: filtramos os conceitos que condizem com nossa perspectiva filosófica e descartamos ou distorcemos o resto. Como partimos de uma visão pragmática e secular, tendemos a ajustar os conceitos para se adaptarem a esse modelo. O mindfulness foi presa fácil desse movimento, tendo sido transformado numa ferramenta para continuarmos correndo atrás de soluções. Se usarmos a atenção plena simplesmente para prestar atenção na respiração durante alguns minutos e em seguida voltarmos à nossa vida no automático, sem consciência, estaremos nos beneficiando muito pouco de suas potencialidades.

Referências

  1. Goyal M, Singh S, Sibinga EMS, Gould NF, Rowland-Seymour A, Sharma R, Berger Z, Sleicher D, Maron DD, Shihab HM, Ranasinghe PD, Linn S, Saha S, Bass EB, Haythornthwaite JA. Meditation Programs for Psychological Stress and Well-being A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Intern Med. 2014;174(3):357-368. doi:10.1001/jamainternmed.2013.13018
  2. Bassam Khoury, Tania Lecomte, Guillaume Fortin, Marjolaine Masse, Phillip Therien, Vanessa Bouchard, Marie-Andrée Chapleau, Karine Paquin, Stefan G. Hofmann, Mindfulness-based therapy: A comprehensive meta-analysis, Clinical Psychology Review, Volume 33, Issue 6, August 2013, Pages 763-771, ISSN 0272-7358, http://doi.org/10.1016/j.cpr.2013.05.005.
  3. Andrew Hafenbrack, Sigal Barsade, and Zoe Kinias. On Whether to Meditate Before a Negotiation: A Test of State Mindfulness. Acad Manage Proc. 2014:1 15676; doi:10.5465/AMBPP.2014
  4. Hanh, TN. A essência dos ensinamentos de Buda. 2001. Rocco.

Foto: Peter Hershey