Validação

Nos meus contatos mais profundos com indivíduos em terapia, mesmo aqueles cujos problemas são os mais perturbadores, os comportamentos mais antissociais, os sentimentos mais anormais, eu percebo que algo é verdade. Que quando eu consigo entender, com sensibilidade, os sentimentos que eles estavam expressando, que quando sou capaz de aceitá-los com pessoas separadas e no seu próprio direito, então eu vejo que eles tendem a se mover (…) na direção da autoatualização, da maturidade, da socialização.
Carl Rogers

A validação é um conceito que permeia qualquer tipo de psicoterapia, seja ela individual, de casal ou familiar. A validação — ou a falta dela — pode ter impactos para toda a vida dependendo da sua existência ou não em fases determinantes do desenvolvimento. Validar o outro significa reconhecer, respeitar e valorizar os seus sentimentos. Validar quer dizer que eu não acho que o outro sente é “bobagem”, “exagero” ou “frescura”. Mesmo que a minha maneira de sentir ou ver uma situação seja diferente, eu não desqualifico o sentir do outro.

A validação é especialmente importante durante a infância, pois nós necessitamos de um referencial externo para aprender a reconhecer, nomear e a lidar com as nossas emoções:

Numa família ideal, a validação pública da experiência privada é fornecida com frequência. Por exemplo, quando uma criança diz que está com sede, os pais lhe dão de beber (em vez de dizer: “Não, você não está. Você acabou de tomar água”). Quando a criança chora, os pais a acalmam e tentam descobrir o que está errado (em vez de dizer: “Pare de ser um bebê chorão!”). Quando a criança expressa raiva ou frustração, os membros da família levam a sério (em vez de dispensarem o sentimento como não importante). Quando a criança diz “eu fiz o meu melhor”, os pais concordam (em vez de dizer: “Não, você não fez”) e assim por diante.
Marsha Linehan

É claro que os pais e família não podem — nem devem — atender todos os desejos da criança. Mas a validação não é isso. É possível educar e colocar limites ao mesmo tempo em que se entende e valida a frustração da criança. “Eu entendo que você esteja brava porque queria brincar, mas este não é o momento” seria uma forma de limitar e ao mesmo tempo validar a experiência.

Quando crescemos num ambiente invalidante, podemos ter dificuldades sérias em lidar com o que sentimos ao longo de toda a vida. Se a validação não ocorre, a criança tem pouca dimensão da adequação de suas respostas emocionais e é comum que ela precise ter comportamentos muito intensos para ser ouvida. Isso pode levar essa criança a se tornar um adulto impulsivo e agressivo. Um ambiente invalidante associado com experiências de abuso físico e sexual é uma história comum em pessoas que apresentam Transtorno de Personalidade Borderline e comportamentos suicidas na idade adulta.

A falta de validação também pode ser um problema nas relações que estabelecemos, especialmente nas entre casais. É muito comum que uma das pessoas do casal, por não concordar com as atitudes do outro, invalide também o que o outro sente. E, quando o outro se sente invalidado, tende a ficar na defensiva e tem menos condições de, por sua vez, reconhecer os sentimentos do cônjuge. Ou seja, é um sistema que se retroalimenta, deteriorando bastante a relação. Validar pode ser difícil porque muitas vezes significa reconhecer que fizemos mal ao outro, que o outro tem um problema com o qual precisamos lidar ou porque não queremos concordar com a forma com a qual o outro agiu. Mas não validar é uma alternativa que, a longo prazo, trará mais dificuldades. Quando se consegue entender o que o outro sente, ainda que não se concorde com as suas atitudes, quebra-se uma barreira, aproximando o casal. Dizer “eu entendo como você está se sentindo e porque agiu como agiu” é uma das maneiras de validar o outro que pode ser bastante significativa. Ter os sentimentos reconhecidos pode ser mais valioso do que receber uma solução para o problema.

A validação também é algo que podemos dar a nós mesmos, especialmente quando faltam fontes de validação externas. Se não fomos muito validados ao longo da vida, tendemos a achar que estamos sempre errados, que temos algum defeito ou que aquilo que sentimos não têm importância. Ouço muito, nas sessões com as pessoas que atendo, a frase “eu não deveria estar me sentindo assim”. Nessas horas, é importante deixar de lado esse julgamento e tentar entender o porquê daquele sentimento, bem como acolher a si mesmo, especialmente em relação a sentimentos negativos. Dessa forma, a pessoa pode aprender a lidar com eles e suas atitudes serão menos dominadas pelas emoções. A validação é um gesto de compreensão e aceitação, e pode ser aplicada não só ao que outro é, mas também ao que nós somos.

Referências
Carl Rogers, 1961, no livro Tornar-se Pessoa.
Marsha Linehan, 1993, no livro Skills Training Manual for Treating Borderline Personality Disorder.

O espelho

Era uma vez um espelho. Sua essência, como a de qualquer espelho, era refletir. Esse espelho, no entanto, tinha uma característica que o diferenciava dos outros da sua espécie. Ora, qualquer espelho sabia que era um espelho. Sabiam que as imagens que formavam não eram pertencentes a si mesmos, e sim àquilo, ou àquele, que se colocava na sua frente. Mas esse não. Esse espelho não tinha construído uma noção de identidade, uma ideia de que ele era algo separado e diferente das coisas que passavam na sua frente. Na sua perspectiva, ele e o outro eram uma coisa só.

Tendo sido colocado num cômodo importante de uma casa, não lhe faltava atividade. Todas as pessoas que moravam ali passavam na sua frente, ajeitavam a roupa, o cabelo ou simplesmente se observavam por alguns instantes. E o espelho, sem ter a noção de que se tratavam de outros, dizia a si mesmo: “sou um homem sério, alto e severo”. “Sou uma moça bonita, sorridente e de cabelos cacheados.” “Sou uma mulher com olhos profundos, penetrantes e tristes.” E, mesmo quando ninguém estava fazendo uso dele, ele continuava se percebendo através daquilo se formava em seu corpo: “sou o interior de uma casa num dia ensolarado”, ou “sou sombras e formas escuras”.

Ele parecia não se agarrar nem se ater a nenhuma dessas concepções. Elas mudavam tão rápido quanto mudava o cenário que ele refletia. Aceitava qualquer coisa, qualquer pessoa, qualquer objeto e o refletia, sem discriminação, da mesma forma que deixava dissolver o reflexo assim que a cena mudava. Por não desejar criar nenhuma imagem e por não tentar segurar nenhuma delas, abraçava com felicidade sua existência de mudança eterna.

Num dia, a família que morava na casa em que o espelho estava resolveu se mudar. Todos os objetos foram acomodados para o transporte. O espelho teve chance, então, de refletir imagens que nunca tinha tido chance antes, com grande satisfação. “Sou uma grande árvore.” “Sou um gramado verde.” “Sou pássaros amarelos revoando.”

Ao término da viagem, no momento de levar os móveis para a nova casa, um dos carregadores se descuidou. Bateu o espelho em uma cadeira, fazendo com que ele se partisse em centenas de estilhaços, que se soltaram da sua moldura e se espalharam pelo chão. Sem perder a alegria, o espelho pode dizer a si mesmo uma última frase: “sou centenas de pedacinhos do céu”.

Psicoterapia e espiritualidade

A questão decisiva para o homem é: está ele ligado ou não ao infinito? Esta é a questão central de sua vida. Apenas se soubermos que a única coisa que realmente importa é o infinito, podemos nos desapegar de futilidades e de quaisquer metas que não são realmente importantes (…). Quanto mais o homem se preocupa com falsas posses e menos sensibilidade ele tem para o que é realmente essencial, menos satisfatória será sua vida. (…) Se entendemos e sentimos que nessa vida já temos uma ligação com o infinito, os desejos e atitudes mudam. No fim das contas, nós só temos valor por conta do essencial que temos em nós, e se não tivermos isso, a vida é desperdiçada.
Carl C. Jung¹

Psicólogos tendem a não saber lidar bem com a espiritualidade e a religião de seus clientes e pacientes. Talvez isso aconteça porque, na formação em psicologia, se fale pouco ou nada sobre espiritualidade. Além disso, grandes autores da área, como Freud e Skinner, são muito críticos da espiritualidade, buscando atribuir à psicologia um aspecto de ciência pura, desconectada dessas questões. Para Freud, por exemplo, a religião podia ser vista como uma forma de expressar e lidar com os conflitos relacionados à figura do pai². Skinner considerava a religião como uma agência controladora³, ou seja, uma entidade que determina o que será punido ou reforçado na nossa sociedade.

Além dos aspectos teóricos, as preocupações éticas podem causar uma certa “paranoia” entre os psicólogos, transformando a religião numa espécie de tabu, como se fosse uma falta ética discutir esse assunto com seus pacientes. Entretanto, o que o código de ética do psicólogo⁴ diz é o seguinte:

ao psicólogo é vedado (…) induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais.

Ou seja, o que o psicólogo não pode fazer é induzir o seu paciente a adotar — ou abandonar — uma determinada crença ou prática religiosa. No entanto, isso não quer dizer que o psicólogo não possa discutir e trabalhar com as crenças e práticas que a pessoa atendida já tenha. Inclusive, alguns autores, como Carl Jung, diziam que uma compreensão completa do ser humano inclui necessariamente a sua espiritualidade, sendo esse um ponto importante a ser abordado num processo psicoterapêutico.

As religiões podem oferecer uma série de recursos extremamente valorosos para que as pessoas lidem com suas dificuldades — e existem autores que defendem essa posição com base em estudos científicos⁵. Deixar de aproveitar esses recursos na terapia seria abrir mão de ferramentas de resiliência, tolerância e compreensão que podem ser fundamentais para a melhora da pessoa atendida.

Já tive a oportunidade de atender pessoas de diversas perspectivas espirituais, como catolicismo, protestantismo, budismo, ateísmo, espiritismo e umbanda. O quanto a religião faz parte da terapia varia de caso para caso, mas em todas as ocasiões em que esse tema foi abordado, o resultado foi positivo. Perguntar “como você entende a situação que você está vivendo dentro da sua perspectiva espiritual?” ou “que aspectos da sua prática espiritual podem ajudar você a lidar com esse momento?” costuma render diálogos muito produtivos.

Outra coisa que precisamos considerar é que justamente pela psicologia se colocar como uma ciência, ela tem suas limitações. Muitas vezes, as dificuldades e os problemas que são trazidos para a terapia vão muito além daquilo que pode ser respondido de forma satisfatória pela psicologia. Questões existenciais envolvendo perdas, envelhecimento, histórias de abuso ou violência, injustiças, que podem ser resumidas na simples pergunta: “por que a vida é assim?” pedem um outro nível de discussão, que passa pela filosofia, pela espiritualidade e simplesmente não têm resposta pronta. Nesses casos, a pessoa que pergunta precisa percorrer o caminho de buscar essas respostas por conta própria, guiando-se pelas referências que ela possui, como a religião. Embora o terapeuta não possa dar essas respostas, ele pode acompanhar e facilitar esse processo, em vez de ignorá-lo.

Referências
1. Carl Jung (1965), em Memórias, Sonhos e Reflexões, pág. 365.
2. Sigmund Freud (1913), Totem e Tabu.
3. B. F. Skinner (1979), em Ciência e Comportamento Humano, pág. 383.
4. Código de ética profissional do psicólogo (2005), do Conselho Federal de Psicologia, pág. 9.
5. Kenneth I. Pargament e Carol Ann Faigin (2012), capítulo 22, Drawing on the wisdom of religious traditions in psychotherapy, do livro Wisdom and Compassion in Psychotherapy, de Christopher K. Germer e Ronald D. Siegel.