O espelho

Era uma vez um espelho. Sua essência, como a de qualquer espelho, era refletir. Esse espelho, no entanto, tinha uma característica que o diferenciava dos outros da sua espécie. Ora, qualquer espelho sabia que era um espelho. Sabiam que as imagens que formavam não eram pertencentes a si mesmos, e sim àquilo, ou àquele, que se colocava na sua frente. Mas esse não. Esse espelho não tinha construído uma noção de identidade, uma ideia de que ele era algo separado e diferente das coisas que passavam na sua frente. Na sua perspectiva, ele e o outro eram uma coisa só.

Tendo sido colocado num cômodo importante de uma casa, não lhe faltava atividade. Todas as pessoas que moravam ali passavam na sua frente, ajeitavam a roupa, o cabelo ou simplesmente se observavam por alguns instantes. E o espelho, sem ter a noção de que se tratavam de outros, dizia a si mesmo: “sou um homem sério, alto e severo”. “Sou uma moça bonita, sorridente e de cabelos cacheados.” “Sou uma mulher com olhos profundos, penetrantes e tristes.” E, mesmo quando ninguém estava fazendo uso dele, ele continuava se percebendo através daquilo se formava em seu corpo: “sou o interior de uma casa num dia ensolarado”, ou “sou sombras e formas escuras”.

Ele parecia não se agarrar nem se ater a nenhuma dessas concepções. Elas mudavam tão rápido quanto mudava o cenário que ele refletia. Aceitava qualquer coisa, qualquer pessoa, qualquer objeto e o refletia, sem discriminação, da mesma forma que deixava dissolver o reflexo assim que a cena mudava. Por não desejar criar nenhuma imagem e por não tentar segurar nenhuma delas, abraçava com felicidade sua existência de mudança eterna.

Num dia, a família que morava na casa em que o espelho estava resolveu se mudar. Todos os objetos foram acomodados para o transporte. O espelho teve chance, então, de refletir imagens que nunca tinha tido chance antes, com grande satisfação. “Sou uma grande árvore.” “Sou um gramado verde.” “Sou pássaros amarelos revoando.”

Ao término da viagem, no momento de levar os móveis para a nova casa, um dos carregadores se descuidou. Bateu o espelho em uma cadeira, fazendo com que ele se partisse em centenas de estilhaços, que se soltaram da sua moldura e se espalharam pelo chão. Sem perder a alegria, o espelho pode dizer a si mesmo uma última frase: “sou centenas de pedacinhos do céu”.

Psicoterapia e espiritualidade

A questão decisiva para o homem é: está ele ligado ou não ao infinito? Esta é a questão central de sua vida. Apenas se soubermos que a única coisa que realmente importa é o infinito, podemos nos desapegar de futilidades e de quaisquer metas que não são realmente importantes (…). Quanto mais o homem se preocupa com falsas posses e menos sensibilidade ele tem para o que é realmente essencial, menos satisfatória será sua vida. (…) Se entendemos e sentimos que nessa vida já temos uma ligação com o infinito, os desejos e atitudes mudam. No fim das contas, nós só temos valor por conta do essencial que temos em nós, e se não tivermos isso, a vida é desperdiçada.
Carl C. Jung¹

Psicólogos tendem a não saber lidar bem com a espiritualidade e a religião de seus clientes e pacientes. Talvez isso aconteça porque, na formação em psicologia, se fale pouco ou nada sobre espiritualidade. Além disso, grandes autores da área, como Freud e Skinner, são muito críticos da espiritualidade, buscando atribuir à psicologia um aspecto de ciência pura, desconectada dessas questões. Para Freud, por exemplo, a religião podia ser vista como uma forma de expressar e lidar com os conflitos relacionados à figura do pai². Skinner considerava a religião como uma agência controladora³, ou seja, uma entidade que determina o que será punido ou reforçado na nossa sociedade.

Além dos aspectos teóricos, as preocupações éticas podem causar uma certa “paranoia” entre os psicólogos, transformando a religião numa espécie de tabu, como se fosse uma falta ética discutir esse assunto com seus pacientes. Entretanto, o que o código de ética do psicólogo⁴ diz é o seguinte:

ao psicólogo é vedado (…) induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais.

Ou seja, o que o psicólogo não pode fazer é induzir o seu paciente a adotar — ou abandonar — uma determinada crença ou prática religiosa. No entanto, isso não quer dizer que o psicólogo não possa discutir e trabalhar com as crenças e práticas que a pessoa atendida já tenha. Inclusive, alguns autores, como Carl Jung, diziam que uma compreensão completa do ser humano inclui necessariamente a sua espiritualidade, sendo esse um ponto importante a ser abordado num processo psicoterapêutico.

As religiões podem oferecer uma série de recursos extremamente valorosos para que as pessoas lidem com suas dificuldades — e existem autores que defendem essa posição com base em estudos científicos⁵. Deixar de aproveitar esses recursos na terapia seria abrir mão de ferramentas de resiliência, tolerância e compreensão que podem ser fundamentais para a melhora da pessoa atendida.

Já tive a oportunidade de atender pessoas de diversas perspectivas espirituais, como catolicismo, protestantismo, budismo, ateísmo, espiritismo e umbanda. O quanto a religião faz parte da terapia varia de caso para caso, mas em todas as ocasiões em que esse tema foi abordado, o resultado foi positivo. Perguntar “como você entende a situação que você está vivendo dentro da sua perspectiva espiritual?” ou “que aspectos da sua prática espiritual podem ajudar você a lidar com esse momento?” costuma render diálogos muito produtivos.

Outra coisa que precisamos considerar é que justamente pela psicologia se colocar como uma ciência, ela tem suas limitações. Muitas vezes, as dificuldades e os problemas que são trazidos para a terapia vão muito além daquilo que pode ser respondido de forma satisfatória pela psicologia. Questões existenciais envolvendo perdas, envelhecimento, histórias de abuso ou violência, injustiças, que podem ser resumidas na simples pergunta: “por que a vida é assim?” pedem um outro nível de discussão, que passa pela filosofia, pela espiritualidade e simplesmente não têm resposta pronta. Nesses casos, a pessoa que pergunta precisa percorrer o caminho de buscar essas respostas por conta própria, guiando-se pelas referências que ela possui, como a religião. Embora o terapeuta não possa dar essas respostas, ele pode acompanhar e facilitar esse processo, em vez de ignorá-lo.

Referências
1. Carl Jung (1965), em Memórias, Sonhos e Reflexões, pág. 365.
2. Sigmund Freud (1913), Totem e Tabu.
3. B. F. Skinner (1979), em Ciência e Comportamento Humano, pág. 383.
4. Código de ética profissional do psicólogo (2005), do Conselho Federal de Psicologia, pág. 9.
5. Kenneth I. Pargament e Carol Ann Faigin (2012), capítulo 22, Drawing on the wisdom of religious traditions in psychotherapy, do livro Wisdom and Compassion in Psychotherapy, de Christopher K. Germer e Ronald D. Siegel.

Gratidão

Não estrague aquilo que você tem desejando o que não tem; lembre-se de que aquilo que você tem agora um dia esteve entre as coisas pelas quais você apenas esperava.
Epícuro

Todos nós queremos ser felizes. Ao longo da vida, vamos descobrindo aquilo que acreditamos que nos trará essa felicidade. Nos colocamos, então, na busca desses elementos, na esperança de que, ao alcançar essas metas, isso nos faça bem. Aquilo que elegemos como determinantes para nossa felicidade pode variar muito: um relacionamento, uma posição social, um patamar na profissão, dinheiro, ter uma família etc.

No entanto, vamos cristalizando essa maneira de enxergar as nossas vidas: há sempre algo faltando, que um dia será suprido, e só nesse dia serei feliz. A consequência disso é que, não importa o que consigamos, nosso olhar estará sempre no horizonte, acabando com qualquer chance de felicidade. Não adianta, então, perseguir aquilo que acreditamos que nos fará felizes sem que haja uma mudança interna de perspectiva. Essa mudança é cultivar a capacidade de olhar para o que há, não o que falta, e para o presente, não para o futuro.

Uma das ferramentas mais poderosas para esse fim é cultivar a gratidão. Agradecer por tudo aquilo que já existe na sua vida, a cada momento. Embora agradecer as pessoas que lhe fazem bem — e até aquelas que lhe fazem mal, pela oportunidade de desenvolver paciência e tolerância — seja algo muito benéfico, podemos ir além. Podemos agradecer, internamente, por aquilo que estamos vivendo; olhar para o momento presente e identificar quais coisas são motivo para gratidão. Se você seguir alguma religião teísta, pode agradecer a Deus; mas mesmo se não seguir, pode exercitar sua gratidão sem um direcionamento específico. Dessa forma, com o tempo, desenvolvemos o olhar para o que temos, e não para o que falta. Percebemos, ainda, que aquilo pelo que agradecemos é concreto, presente e atual; o que falta existe apenas em imaginação, nas nossas mentes.

Pode ser difícil exercitar a gratidão em momentos ruins. A dor de uma situação difícil faz com que nosso olhar fique ainda mais focado naquilo que falta, ou naquilo que perdemos. Mas, mesmo nessas situações, é possível encontrar algo pelo qual podemos ser gratos. Mesmo que estejamos na pior das condições, é possível agradecer o simples fato de se ter vida, de ter tido a oportunidade de viver. É possível agradecer até mesmo a situação difícil, pois geralmente são as crises que fazem com que nos tornemos pessoas melhores.

O cultivo da gratidão nos permite retomar o contato com as coisas pequenas e simples, muitas vezes tomadas como garantidas, que nos fazem bem. Ter alimento, água para beber, um teto, a companhia ou a amizade de outras pessoas, a capacidade de ouvir o canto de um pássaro, o raciocínio que nos permite entender o mundo… Há tanta coisa que se torna desapercebida por conta do nosso olhar acostumado que está sempre procurando algo lá longe, sem perceber que estamos sentados sobre um tesouro.

Além do cultivo à gratidão estar muito presente na maioria das tradições espirituais, há base científica para a sua relação com a felicidade. Um estudo de 2003¹ feito nos Estados Unidos mostrou que quando se encara a vida pela ótica da gratidão, o bem estar é maior. Os autores introduzem o artigo com uma citação de Charles Dickens que resume o que eles observaram — e o que este texto pretende dizer:

Reflita sobre as suas bênçãos presentes, as quais todo homem tem bastante; e não sobre os infortúnios passados, os quais todos homens têm alguns.

1. Emmons, R. A., & McCullough, M. E. (2003). Couting blessings versus burdens: An experimental investigation of gratitude and subjective well-being in daily life. Journal of Personality and Social Psychology, 84 (2), 377-389.