Não há nada de errado com você

1382705661_0c58c4da10
Foto: Davide Cassanello

A psicologia ocidental costuma adotar pontos de vista semelhantes ao da medicina na sua forma de entender as pessoas. Uma visão médica implica num modelo de funcionamento “normal” de um indivíduo. Quando algo sai dessa normalidade, denomina-se um estado chamado de doença que precisa ser curada. Essa visão é bastante útil na medicina e permitiu inúmeros avanços na área da saúde. Entretanto, quando falamos de saúde mental, esse modelo pode não ser o mais adequado.

O primeiro problema que enfrentamos é o fato de ser muito difícil, quando nos referimos ao comportamento, sentimentos e emoções, dizer o que é normal. A forma como agimos e como nos sentimos é muito diversificada. Ela varia de acordo com a situação, de acordo com a nossa história e de acordo com a cultura em que estamos inseridos. Homens esquimós, em alguns contextos, podem “emprestar” suas esposas para outros homens. Na nossa cultura, isso seria tido como um comportamento atípico. Poderíamos adotar critérios, como a frequência média de um determinado comportamento, para estabelecer um padrão de normalidade. Mas esse seria um critério arbitrário: poderia me levar a pensar que se eu não assisto tanta TV quanto o resto das pessoas, tenho algum problema. Ou seja, falar em normalidade psicológica é impossível a menos que adotemos uma referência que será inevitavelmente limitada.

Como se isso não bastasse, há uma outra complicação, que é enxergar os sintomas de doenças mentais desconectados de seus contextos. É muito diferente ter períodos de tristeza sem um motivo aparente, ou ter um período de tristeza após a morte de alguém querido, por exemplo. Embora os manuais de classificação diagnóstica como o DSM-5 façam uma ressalva em relação à observação do contexto e do impacto que os transtornos causam na vida das pessoas, muitas vezes esse detalhe é negligenciado. E aí achamos que temos algo errado dentro de nós, tal qual um vírus, que precisa ser curado ou extirpado. Essa visão favorece muito a indústria farmacêutica, que com isso pode justificar a venda de medicações para o tratamento desses quadros.

Será que precisamos considerar os transtornos mentais como doenças para justificar o tratamento? Precisamos dizer que a pessoa tem alguma coisa? Se um medicamento pode ajudar alguém a funcionar melhor, ou seja, se sentir bem o suficiente para conseguir realizar aquilo que ela valoriza, isso já não é um motivo suficiente? Parece que, ao usar a ideia de doença mental, tentamos justificar biologicamente um conceito que é, na verdade, cultural. Apesar do termo “doença” mental já ter sido abandonado — e substituído por transtorno (disorder, em inglês) — a visão de que temos um funcionamento “normal” a ser obtido permanece.

Já vi muitos pacientes que se aliviam por ter um diagnóstico, como se finalmente eles se compreendessem. Algo como: “entendi porque eu ajo dessa maneira, é porque eu tenho TOC (transtorno obsessivo compulsivo)” — ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, ou ansiedade generalizada, ou personalidade borderline ou qualquer outro quadro que você queira colocar aqui. O problema é que essa explicação não explica nada. Você não age compulsivamente porque tem TOC. Você tem TOC porque age compulsivamente, e porque foi decidido pelos psiquiatras que quem se comporta dessa maneira receberá esse rótulo. E continuamos com a questão sobre o porquê das suas ações em aberto.

É mais produtivo, então, abandonar essa explicação circular, os rótulos e os julgamentos decorrentes. Se você quer realmente entender porque age compulsivamente, é necessário olhar para a sua história de vida, seus genes, a cultura em que você está inserido e, especialmente, qual a função da compulsão na sua vida atual. E como a junção desses fatores em você é algo extremamente único, esse olhar deve ser individualizado. Tudo isso sem o julgamento que geralmente fazemos de nós mesmos. Você é essa soma, esse fluxo, e o que você é não é certo ou errado, não é melhor ou pior, não é culpa ou responsabilidade de ninguém: apenas é. Olhe para si mesmo com olhos compassivos, curiosos, e desprovidos de julgamento. O que você vê?

Abrir mão: chave para a flexibilidade

Foto: Mr. Teklan
Foto: Mr. Teklan

“As pessoas têm dificuldade em abrir mão do seu sofrimento. Por causa do medo do desconhecido, elas preferem o sofrimento familiar.”
Thich Nhat Hanh

Um dos temas mais frequentes nas filosofias orientais é a necessidade de abrir mão, de nos desapegar, de deixar ir, de forma que tudo flua mais naturalmente. Apesar de ser uma mensagem simples e direta, pode ser difícil, para nós do ocidente, entender a razão e o benefício de uma atitude dessas. Afinal de contas, na nossa cultura, somos estimulados ao contrário: a ter, a possuir, a nos apegar — especialmente ao material — e a conquistar. Parece que se abrirmos mão, nos tornaremos passivos, apáticos e distantes daquilo que desejamos. Só que pode ser justamente ao contrário, especialmente se encararmos isso numa perspectiva psicológica.

Uma dos principais objetivos da psicologia clínica é desenvolver a flexibilidade psicológica. Quanto mais flexíveis somos, melhor conseguimos navegar pelas tormentas a que estamos sujeitos ao longo da nossa existência. E a flexibilidade se reflete muito na nossa capacidade de abrir mão. Ao contrário do que parece, abrir mão pode tornar nossa vida e nossa experiência muito mais rica.

Imagine que você, ao longo de um caminho, vá encontrando uma série de pedras. Elas aparecem em diferentes formatos, cores e tamanhos. Você vai escolhendo algumas dessas pedras, até que enche seus bolsos, suas mãos, carregando o máximo delas que consegue. Depois de um tempo, fica difícil andar por causa do peso. Você cansa muito mais fácil, e não raramente passa muito tempo no mesmo lugar, apenas juntando forças para conseguir prosseguir, carregando todas as pedras. Como suas mãos e bolsos já estão cheios, você não pode mais pegar nenhuma pedra que encontra.

As pedras são aquilo que escolhemos levar conosco durante nosso trajeto. Elas podem ser bem concretas, como pessoas, trabalhos, bens materiais, e também podem ser intangíveis, como lembranças, regras, expectativas, desejos. Se não conseguimos nunca soltá-las, podemos ficar cada vez mais paralisados, vivendo com pesar e nos sentindo sobrecarregados. Percebemos isso quando nos dizemos coisas como:

  • Gostaria muito de trabalhar com o que gosto, mas não consigo deixar meu emprego;
  • Gostaria de parar de beber, mas preciso manter uma imagem legal para meus amigos;
  • Gostaria de ser uma pessoa diferente, mas não posso desviar do que minha família espera de mim;
  • Gostaria de aproveitar melhor o presente, mas não consigo deixar de lembrar como minha vida já foi melhor;
  • Gostaria de não brigar com meu colega, mas não posso deixar de impor minhas ideias;
  • Gostaria de mudar de cidade, mas não quero perder tudo que já investi aqui;
  • Gostaria de sair desse relacionamento que não dá certo, mas será que meu namorado(a) não pode mudar se eu insistir mais um pouco?

Podemos ver que aquilo a que nos apegamos e que nos impede de viver melhor muitas vezes só existe na nossa cabeça: é a nossa autoimagem, as nossas expectativas, aquilo que imaginamos que os outros esperam de nós, uma lembrança do passado ou uma esperança em algo futuro. Por medo da perda, da insegurança e do desconhecido, nos condenamos a uma vida frustrante e rígida. E, muitas vezes, esses pesos que carregamos nem foram escolhidos por nós mesmos: foram colocados sobre nossas costas por outros — não raro tentando aliviar o próprio fardo.

Abrir mão não significa desistir, mas sim nos libertar dos pesos que nos imobilizam, especialmente aqueles que não escolhemos e que não são reais. É deixar de lado as lembranças, as expectativas, a preocupação com a própria imagem, e tudo aquilo que vivemos que não está de acordo com o caminho que queremos traçar, como um emprego ou um relacionamento. Esvaziando os bolsos, podemos andar mais livremente, ir mais longe e caminhar com leveza. Continuaremos carregando algumas pedras, mas que sejam as pedras preciosas que dão sentido à nossa vida, aquelas que carregamos com alegria.