Enquadrando o mundo

“Quando o sábio aponta a lua, o tolo olha o dedo.”
Provérbio chinês

Foto: Julien
Foto: Julien

No último texto, falamos sobre como criamos conceitos que facilitam a nossa relação com o mundo e como esses conceitos podem nos tornar rígidos e nos afastar das experiências. Isso é o que ocorre num nível individual. Da mesma forma, podemos pensar em como os sistemas de conhecimento que temos podem levar a mesmo resultado.

A ciência é um deles. A ciência é uma forma de produzir, organizar e validar o conhecimento que temos sobre o mundo e o universo. Mas é apenas uma forma, um modelo, um método. O que a ciência diz sobre o mundo, com suas teorias, métodos e leis, não é o mundo. Assim como a filosofia ou a psicologia, ela tem uma limitação: é algo criado em nossas mentes, usando uma certa linguagem. As ciências, as disciplinas e as teorias são úteis, mas desde que não esqueçamos de que elas não são aquilo que elas descrevem. Elas são um meio, não um fim.

Na psicologia — e nas ciências humanas de forma geral — isso fica mais evidente, pois temos nela uma série de formas distintas de encarar o ser humano que podem ser bastante conflitantes. Quando esquecemos que a nossa abordagem, a nossa forma de ver o mundo, é apenas uma forma e nos apegamos demais a ela, corremos o risco de sermos o tolo que olha para o dedo que aponta para a lua. Ou pior, podemos entrar em uma discussão sobre qual é o melhor ou o maior dedo.

A abordagem de um psicólogo, ou a teoria que embasa o seu trabalho, é como um quadro através do qual ele enxerga o outro. Posso usar um quadro mais rebuscado, um mais objetivo, um mais amplo ou um mais restrito. Posso usar sempre o mesmo quadro ou variá-lo de acordo com a situação. Mas o quadro é apenas uma ferramenta. O sofrimento da pessoa que procura ajuda é o mesmo, independentemente do quadro através do qual se olhe. E o alívio que ela busca também é sempre o mesmo; dificilmente ela vai estar preocupada com o quadro que o terapeuta vai usar, desde que ele consiga ajudá-la.

Nos apegamos aos quadros porque eles nos trazem segurança. Se entendemos sobre física, podemos entender — e até prever — como as coisas se movem, por exemplo. Mas a física não é o movimento. É apenas uma construção mental que tenta descrever o movimento. Posso descrever as forças que atuam numa montanha russa, mas isso nada tem a ver com estar na montanha russa. Por isso, é saudável não transformar o conhecimento em um ídolo. Menos ainda, nos prender tanto ao conhecimento a ponto de não experimentar o mundo tal qual ele é, livre de conceitos. Na psicologia, é fundamental não deixar que o conhecimento teórico impeça um contato real com o outro, pois ser não pode ser descrito ou classificado com meras palavras.

Você não tem nome

“Da mesma forma que ninguém pode amarrar um pacote com a linha do equador, o mundo real em movimento escorre como água através das nossas redes imaginárias. Por mais que a gente divida, conte, distribua ou classifique esse movimento em coisas e eventos particulares, isso é só uma forma de pensar sobre o mundo: ele não é, nunca, realmente dividido.”
Alan Watts

Foto: Beshef
Foto: Beshef

A linguagem é fantástica. Se pararmos para pensar por um instante, podemos reconhecer como é estranho e fascinante usar conjuntos de sons ou símbolos para representar alguma outra coisa. Todo nosso desenvolvimento científico e cultural depende da linguagem. Nós a usamos para tudo, até para falarmos conosco, nas nossas ruminações constantes.

Podemos pensar em quais são as implicações de usar a linguagem de maneira contínua nas nossas vidas. Faça um breve exercício: pare por alguns minutos de ler esse texto e preste atenção nos sons que você está ouvindo nesse momento. Além disso, preste atenção no que ocorre na sua mente enquanto você ouve. Pronto? Você provavelmente ouviu os sons e os nomeou (“estou ouvindo o canto de pássaros, o som de automóveis na rua, a televisão ligada”). Você pode, além disso, ter colocado todos os sons em categorias, como “gosto/não gosto”, “agradável/desagradável”, “alto/baixo”. A linguagem nos impede de experimentar a vida diretamente. Rotulamos e classificamos cada coisa que acontece conosco, no mesmo momento em que elas acontecem.

Ao classificar cada evento, cada situação, cada pessoa, podemos saber como agir frente a eles. Nos sentimos mais seguros. Mas isso também tem um custo: ficamos presos aos conceitos que temos das coisas; vivemos em função e em contato com esses conceitos, mais do que com as nossas experiências. Às vezes, criamos conceitos sobre algo e nunca mais o mudamos, não importa o quanto esse algo mude depois de certo tempo. Um outro problema é que, de forma geral, nossos conceitos são muito restritos. O mundo que eles tentam representar é muito diferente do que a nossa linguagem consegue descrever.

Pense no seu nome. No seu nome, está implícita toda a sua identidade, toda a sua história. É quase como se você fosse o seu nome. Mas, se você pensar bem, você não tem um nome. Ninguém tem. Seu nome é um mero conceito criado pelos seus pais e usado pelas pessoas que vivem com você. E o que você chama de identidade são outros conceitos atrelados ao conceito de nome. Pense em você sem o seu nome. E nas pessoas próximas de você sem os seus respectivos nomes. Em vez dos conceitos automáticos que geralmente os acompanham, talvez você consiga ver a si mesmo e aos outros um pouco mais como eles são de fato. Tente repetir o exercício dos sons, mas dessa vez prestando atenção em como você os rotula. Tente deixar de lado esses rótulos e ouvir os sons tais quais ele são, sem descrições.

Observar os conceitos que utilizamos inconscientemente o tempo todo nos permite escolher quando eles são necessários. É muito útil, de tempos em tempos, deixar de lado essas descrições e definições preestabelecidas que temos de tudo e de todos — inclusive nós mesmos. Dessa forma, podemos criar espaço para ver a nós, as coisas e as pessoas tais como elas são, sem preconceitos, julgamentos e rótulos. Pode ser um pouco desconfortável abandonar a segurança que os conceitos nos trazem, mas a abertura que ganhamos com essa atitude é um passo muito importante para uma vida mais plena.

Estamos todos no mesmo barco

Foto: Raymond Larose
Foto: Raymond Larose

Uma vez, eu estava questionando as expectativas que uma paciente que eu atendia tinha sobre as outras pessoas mudarem. Ela respondeu de forma bastante franca: “você tem expectativa de que eu mude; por que eu não posso ter a mesma expectativa em relação aos outros?”. Era uma boa resposta. Argumentei que a nossa situação era diferente, pois ao procurar terapia ela estava, de certa forma, dizendo que queria mudar, então seria natural que eu esperasse isso dela. Por outro lado, as pessoas na vida dela não estavam, necessariamente, pedindo a ela ajuda para mudar.

Esse diálogo, no entanto, serviu para que eu percebesse o quanto um terapeuta e seu (ou sua) paciente estão no mesmo nível. O terapeuta pode ter as mesmas atitudes que ele procura mudar na pessoas atendida. Além disso, de forma mais ampla, ambos estão procurando formas de viver bem, de diminuir o sofrimento, de serem felizes. Muitas vezes, quando o paciente está sofrendo, se vê sem saída, o terapeuta se vê na mesma situação. Quando as técnicas falham e o cliente não sai do lugar, o psicólogo pode experimentar na própria pele a angústia que a pessoa atendida vem sentindo há tempos.

Na faculdade, pela forma como a psicologia é ensinada, temos a ideia de que ao nos formarmos psicólogos, estaremos num nível diferente daquele que nos procura. Pensamos que, por conta do nosso conhecimento, entendemos mais sobre a vida, a personalidade, o comportamento, nos colocando num patamar acima dos outros. Imaginamos que, do alto da nossa sabedoria, sobre os ombros dos mestres como Freud, Jung, Skinner, Rogers, estenderemos a mão para quem nos pede ajuda e curaremos a angústia do outro facilmente.

Basta um pouco de prática para perceber o quanto estávamos enganados. Logo nos damos conta que na psicologia as coisas não são tão exatas, que as técnicas não são assim tão poderosas, e que as dificuldades que as pessoas apresentam são muito mais complexas do que aquelas que os livros nos contam (e geralmente os livros só falam dos casos em que tudo dá certo!). Hoje temos acesso à literatura científica com seus milhares de estudos randomizados e controlados, suas revisões sistemáticas. Contudo, todo esse conhecimento — embora extremamente útil para sabermos o que é mais ou menos efetivo em termos gerais — não nos diz muita coisa sobre aquele indivíduo específico que está na nossa frente. Não importa quantas pessoas já atendemos no passado: com cada pessoa que nos procura, começamos sempre do zero.

Tudo isso poderia ser um grande problema, mas na verdade é uma ótima oportunidade para que o psicólogo — assim como qualquer outro profissional de saúde ou que lide com pessoas — desenvolva uma forma mais humana de trabalho: uma relação horizontal com seu paciente, falando de igual para igual. Afinal de contas, ambos têm o mesmo objetivo: que o cliente se sinta melhor, atinja seus objetivos, saiba lidar melhor com a vida e aproveitá-la. Se o psicólogo consegue abandonar essa posição superior ilusória, assumindo que ele não é o dono da verdade, e estabelecer uma aliança com seu paciente, ambos têm a ganhar. Nessa aliança, cada um tem seu papel, que são igualmente importantes.

Isso pode se aplicar para a vida como um todo, não apenas para esse tipo de relação. Pois, apesar de nos vermos como muito únicos, nós somos todos muito parecidos. Todos nós queremos a mesma coisa, a felicidade. Nossas alegrias são semelhantes: pela paz, por estar no meio de pessoas queridas, pelas conquistas profissionais. Sofremos da mesma forma, pelos mesmos motivos: perdas, frustrações, ao sermos injustiçados ou atacados. Todos nós sentimos fome, rimos e choramos. Se conseguirmos enxergar que o outro — mesmo aqueles de quem não gostamos — são tão humanos quanto nós e têm as mesmas dores, os mesmos medos, é possível ter uma atitude mais pacífica. E a contrapartida também é válida: ao nos permitirmos sentir dúvida, medo, angústia, incerteza, mesmo quando estamos numa posição em que acreditávamos que esses sentimentos não deveriam existir, podemos ter uma relação mais equânime com os outros e ficar um pouco mais em paz com nós mesmos.