Evitação experiencial

“Estar disponível para a vida — é possível falar disso uma existência inteira, sem que se saiba o que de fato seja. Estar à disposição da existência supõe não ter certeza alguma, ouvir sem julgar, sem preferir, sem escolher. Ser disponível é ser livre ainda que por alguns instantes. Uma vez provada, a liberdade retorna sempre.”
Luiz Carlos Lisboa

Foto: Lauren Rushing
Foto: Lauren Rushing

Imagine que alguém convidou você para uma festa. Você realmente gostaria de ir, conhecer pessoas novas, se divertir um pouco, fazer algo diferente. Ao mesmo tempo, você é uma pessoa tímida, tem alguma dificuldade em fazer contato com estranhos, não sabe ao certo como se vestir e como se comportar. Você sabe, então, que se for a essa festa, sentirá tensão, desconforto e correrá o risco de se sentir mal por fazer algo errado. Quando tudo isso vem à sua cabeça, você agradece o convite mas diz que não poderá ir, dando uma desculpa qualquer.

Essa tendência a evitar situações que possam fazer com que nos sintamos mal é chamada de evitação experiencial. É um mecanismo natural, que visa nos proteger de situações ameaçadoras. O problema é que essa evitação pode tomar proporções tão grandes que alguns pesquisadores acreditam que ela está na raiz de muitos problemas psicológicos graves.

Imagine que um trabalhador está retornando para casa, no seu carro. Ele teve um dia difícil, com muitas cobranças no emprego e a possibilidade de ser mandado embora. É tarde, está chovendo e o trânsito está caótico. Preso no engarrafamento, ele repassa o dia na sua cabeça e visualiza todas as possibilidades catastróficas que tem pela frente. Os filhos para sustentar, as contas a pagar, as prestações da casa. Seu coração começa a bater mais forte. Ele percebe suas mãos suadas. De repente, ele é invadido por um desespero, uma sensação de sufocamento, com a nítida impressão de que vai morrer. Imediatamente, sai do carro e o deixa no meio da rua. Depois de um tempo, as sensações diminuem e ele consegue ficar mais calmo. Mas a experiência foi tão intensa e dolorosa que a partir daquele momento ele não consegue mais dirigir, e nem mesmo entrar num automóvel novamente. Sabemos que o problema não é o carro em si, mas como foi nele que o ataque de ansiedade teve seu pico, é essa a associação que permanece. A evitação experiencial está no medo de voltar a sentir tudo isso de novo, levando-o a um quadro chamado de síndrome do pânico.

Esse é um exemplo de como a evitação experiencial pode levar a um quadro sério. Mas podemos pensar em algo mais corriqueiro, como uma mulher que já teve diversas desilusões amorosas e não consegue mais se envolver com ninguém. Ela até consegue sair, conhecer pessoas novas e ficar com alguém interessante por uma noite, mas quando há um desejo do outro por algo mais sério, ela desaparece. No fundo, ela até gostaria de tentar — ela se imagina num relacionamento estável, casando e talvez até tendo filhos — mas o risco de se desiludir novamente é forte demais. Muitos filmes românticos exploram justamente essa fórmula: dos personagens que encontram um amor tão forte que os fazem vencer a evitação experiencial decorrente das frustrações passadas.

A evitação experiencial, então, é algo cuja função é nos proteger. Só que, quando exagerada, ela acaba também nos privando daquilo que queremos viver. O percurso para a vida que desejamos não é o desprovido de dificuldades e sofrimentos. Pelo contrário, é justamente o que passa por aquilo que não queremos sentir. A solução — que é fácil de ser descrita mas difícil de ser executada — é parar de fugir e enfrentar o que nos assusta. Pois, se conseguimos tolerar os riscos e o sofrimento que estão no caminho até o que acreditamos ser a nossa felicidade, nada pode nos segurar.

Pessoas difíceis

“Para um praticante espiritual, os inimigos têm um papel crucial.
No meu entender, a compaixão é a essência de uma vida espiritual. A fim de ser plenamente recompensado pela prática do amor e da compaixão, o treinamento da paciência e da tolerância é indispensável.
Não há coragem alguma que se assemelhe à da paciência, como também não há desconforto pior que o da raiva.
Em consequência, nossos esforços devem ser todos empenhados não para morrer de raiva contra nosso inimigo, mas para revigorar nossa prática da paciência e da tolerância.”
Dalai Lama

Foto: Brendon Burton
Foto: Brendon Burton

Todos nós temos aquela pessoa difícil nas nossas vidas. Às vezes, mais do que uma. Pode ser um familiar, um colega de classe, de trabalho, um vizinho. Desenvolvemos uma animosidade que não raro chega ao ponto em que tudo que a pessoa faz nos irrita. Fazemos longas listas mentais com todos os defeitos e atitudes problemáticas que esse outro tem. Chegamos à conclusão que a vida seria melhor se a pessoa fosse diferente, se estivesse longe ou até se não existisse.

Quando estamos listando todos os seus defeitos e fantasiando sobre como tudo seria melhor se as coisas fossem diferentes, o que estamos realmente fazendo? Na verdade, estamos criando uma versão ideal do outro, baseada na nossa perspectiva do que é bom ou ruim. Nessa versão ideal, o outro não faria nada de errado, seria diferente, agiria de outra forma. Mas essa é uma visão irreal. Essa pessoa idealizada simplesmente não existe. Veja quanto sofrimento causamos a nós mesmos por esperar que as pessoas fossem do jeito que gostaríamos.

Vemos isso o tempo todo: dizemos como todo mundo deve se comportar e pensar. “As pessoas deveriam ser mais honestas, mais responsáveis, mais civilizadas, mais ativas, etc.” Adoramos falar o que o outro deve fazer. Acreditamos ter a receita certa sobre como o mundo deveria funcionar; não é incomum que pensemos mais ou menos dessa forma: “se todo mundo agisse do jeito que eu acho certo, tudo seria ótimo”.

O problema é que acreditar muito nisso — ou pior, tentar convencer os outros disso — pode ser muito estressante, além de pouco prático. Se você realmente quer viver melhor, pode ser uma boa ideia fazer justamente o contrário. Olhe para esse outro que tanto incomoda e agradeça por ele ser como é. Essa pessoa pode lhe ensinar muito sobre você mesmo(a). Basta olhar a fundo a raiz do incômodo que ela lhe causa. Você pode perceber que esse incômodo tem mais a ver com você mesmo do que com o outro. E, quando você olha para o outro e reconhece aquilo que não gosta, que não quer, que não é, você está se definindo: você percebe quem é, o que é, o que quer. Esse outro que parece atrapalhar tanto nos ajuda a estabelecer a nossa própria identidade.

Além disso, uma pessoa difícil possibilita uma grande oportunidade: você tem a chance de desenvolver sua compaixão, sua paciência, sua tolerância. Alguns valores na nossa cultura parecem ser apenas da boca pra fora: ouvimos desde cedo sobre como é esperado que amemos o próximo, que nos coloquemos no lugar do outro, que não falemos mal das pessoas. Mas quando realmente fazemos isso? Amar alguém da nossa família, amar uma pessoa boa, amar uma pessoa agradável, é muito fácil. Agora, amar aquele que nos corta no trânsito, o colega inconveniente do trabalho, a cunhada maldosa, o radical de quem discordamos, o político corrupto, isso sim é difícil. Essas pessoas são o verdadeiro teste do nosso amor, e por isso é importante valorizá-las.

Aprendendo com nossos demônios

Foto: Steve Mishos
Foto: Steve Mishos

“Todos nós aprendemos e somos moldados pelas nossas interações com o ambiente. Para receber aquilo que vem do ambiente, é preciso estar nele para interagir. Isso não quer dizer que basta você estar fisicamente presente. Você precisar estar psicologicamente presente. Se, por exemplo, você tiver medo de cães ou aranhas, você precisa interagir com cães e aranhas de diversas maneiras para que o medo diminua. Sentar na classe sonhando acordado e olhando as nuvens não vai te ajudar a aprender álgebra. Para aprender álgebra, você precisa interagir com fórmulas, números, variáveis e assim por diante. Para interagir de forma efetiva com o mundo à sua volta—seu trabalho, família, amizades etc.—você precisa ter abertura àquilo que as situações que você encontra têm a lhe ensinar. Essas situações não podem e não vão ensinar a você o que funciona a menos que você encontre dentro de si a capacidade de ouvir, de prestar atenção a elas no momento presente. As coisas que lhe geram ansiedade podem, na verdade, ensinar muito sobre como você pode e deve agir no mundo.”

Kelly G. Wilson

Quando conseguimos estar no presente e ouvir um pouco o que as nossas sensações nos dizem, podemos aprender muito sobre nós mesmos. O problema é que passamos o tempo todo tentando fugir das situações e sensações negativas, impedindo qualquer chance de aprendizado e nos colocando num processo contínuo de fuga e esquiva. Ouvir o que o incômodo nos diz requer esforço, mas pode nos apontar o caminho para a resolução dos nossos problemas.

Vamos tomar como exemplo uma pessoa excessivamente ciumenta. Daquelas que cria uma confusão enorme por conta de cada deslize do companheiro ou da companheira, que briga, ameaça, vigia. Uma pessoa que age dessa forma provavelmente tem horror à ideia de ser abandonada, trocada, traída. Dá pra entender, pois de fato essas coisas não são boas. Mas o problema aí é que ela tem tanta aversão a essa possibilidade que sua prioridade é evitá-la e suas atitudes podem atropelar outros valores importantes, como o próprio afeto que ela tem pelo companheiro.

Se, em vez de reagir à aversão que surgem nessas situações e culpar o outro por causá-las, ela conseguisse permanecer um pouco com a sensação de ciúmes e a utilizasse para se entender, ela poderia perceber uma série de coisas. Primeiro, que o medo pode estar mais nela mesma—na sua própria história—do que nas atitudes do outro; que ela tem uma grande dificuldade em lidar com a possibilidade de perder o outro; e que as atitudes por conta desse medo podem justamente causar o que ela teme. A partir daí, seria possível ainda que ela percebesse que a garantia que o outro estará sempre do lado dela não existe, e que estar num relacionamento necessariamente envolve o risco de perder a pessoa amada.

Seria libertador chegar nesse ponto, ainda que isso significasse conviver com a incerteza e a dúvida que nos incomodam tanto. Mas a realidade de fato é incerta.

Ou seja, pode ser muito importante abrir espaço para nos aprofundar naquilo que tememos—não numa ruminação catastrófica, mas numa autoanálise em que nos questionamos cada vez mais a fundo sobre a raiz dos nossos medos. Se conseguirmos abraçar, em vez de fugir—como fazemos no nosso modo automático—temos uma chance de viver melhor, agir de forma mais consciente e cuidar melhor de quem está à nossa volta.

Referência
Wilson, K. G. (2010). Things might go terribly, horribly wrong. Oakland: New Harbinger.