Considere alguém que é viciado em heroína mas está tentando parar de usar a droga. A partir do momento em que ela decide parar de usar, ela se encontra no meio de uma situação muito ambígua. Ela vai continuar limpa ou vai voltar a usar? Ela vai? Ou não?
E a resposta? Ninguém sabe. A pessoa viciada não tem uma bola de cristal; ela não pode ver o futuro. Só existe uma forma de saber com certeza, apenas uma maneira em que ela pode eliminar a densa ambiguidade: enfiar a agulha no braço. No momento em que ela usa, ela tem um momento de alívio da ambiguidade. (…) Para alguns de nós, de tempos em tempos—e para alguns de nós, o tempo todo—a dor de não saber pode se sobrepor à dor da mais destrutiva das ações.
(…)
Aprender a amar a ambiguidade pode ser uma ação muito poderosa, embora contraintuitiva. Amar aqui não significa amar no sentido romântico. Falamos de amar como um ato. Você pode aprender a valorizar e a se importar com a ambiguidade. Você pode convidá-la para sua casa por um tempo, oferecer-lhe uma limonada, conversar com ela e ouvir o que ela tem a dizer. Frequentemente, você descobre coisas em meio à ambiguidade que não pode ver ou experienciar em nenhum outro lugar.
Kelly G. Wilson
Nosso desconforto com a ambiguidade é extremamente poderoso. Detestamos não saber o que vai acontecer. Por isso, fazemos muitas coisas que não queremos ou gostamos simplesmente para nos livrar de situações ambíguas. Podemos, por exemplo, desistir de um curso por não sabermos se não vamos conseguir nos sair bem. Ou permanecer num relacionamento infeliz por não saber como será nossa vida após o término. Preferimos a infelicidade certa do que a felicidade incerta.
Mas o fato é que na verdade nunca realmente sabemos o que vai acontecer. A nossa vida é pura ambiguidade. Nos apegamos a certezas e rotinas que nos dão uma sensação de controle, mas se pensarmos bem, perceberemos que esse controle, essa segurança, é puramente ilusória. Para conseguirmos viver da maneira que queremos, ou seja, agir em função dos nossos valores, é fundamental tolerar a ambiguidade. Pois tentar evitá-la é justamente o que nos faz adiar nossos sonhos e aspirações, em nome dessa pretensa segurança. Além disso, se temos a ambiguidade como aversiva, permanecemos o tempo todo ansiosos, já que a ambiguidade é praticamente constante.
A vida pode mudar radicalmente de um dia para o outro: você pode perder o emprego ou ganhar na loteria; e a vida também pode não ter nada de surpreendente por algum tempo. E é justamente essa incerteza que a torna tão fantástica, se você conseguir mergulhar nela. Você pode enxergar o desconhecido com curiosidade e até excitação, como alguém que espera o próximo capítulo da novela. E aí, pode-se ter um ganho enorme de liberdade, pois deixamos de agir para escapar de situações de incerteza e passamos a guiar nossas atitudes a por aquilo que queremos para nós mesmos.
Referência
Wilson, K. G. (2010). Things might go terribly, horribly wrong. Oakland: New Harbinger.
Nas tradições psicológicas ocidentais, desenvolvimento saudável significa ser bem individuado, não depender excessivamene dos outros, ter conhecimento das próprias necessidades e ter respeito pelos próprios limites, com um senso de identidade claro e estável e um senso de si mesmo marcado por coesão e autoestima. Embora essa visão tenha sido criticada por teóricos relacionais contemporâneos, ela continua a formar o pano de fundo tanto para as abordagens psicodinâmicas como comportamentais.
Não é surpresa, então, que as queixas trazidas para a psicoterapia por ocidentais seja justamente a falta de alguma dessas características. Tanto o curso de desenvolvimento em direção a essa concepção ideal de pessoa como as formas pelas quais as pessoas se desviam desse caminho são determinadas culturalmente. Naturalmente, a psicoterapia busca levar os indivíduos a se adequar de forma completa a essa concepção social do que é uma pessoa normal.
Planos de tratamento frequentemente expressam ideais culturais. Dizemos que o tratamento tenta “melhorar a autoestima… identificar as próprias necessidades numa relação… estabelecer um senso de si mesmo mais coerente… estabelecer limites e aprender a mentê-los nos relacionamentos” e assim por diante. Nossa ênfase na autonomia do indivíduo (muitas vezes contra evidências das ciências sociais) levou a um amplo vocabulário técnico para descrever transtornos do self e os consequentes prejuízos nas relações.
Paul R. Fulton & Ronald D. Siegel
Nós temos alguns valores e concepções tão universalizados na nossa cultura que é difícil perceber que eles são apenas um ponto de vista. Um deles é essa ideia de que temos que ser essa pessoa autônoma, independente, coerente, assertiva, bem resolvida e cheia de autoestima. Você conhece alguém assim? Eu também não.
Mas nós achamos que essa é a forma como temos que ser, e quando não somos, achamos que tem algo errado conosco. E, como o texto diz, é muito comum que as pessoas procurem a terapia porque acreditam nesse ideal, e se cobram por atingi-lo. De fato, é possível que alguém tenha uma visão excessivamente negativa de si, e a terapia pode ser útil para que essa perspectiva seja mais positiva. Mas isso não significa que o extremo oposto seja saudável.
Uma das coisas que aprendi na minha própria terapia é a dificuldade que temos para reconhecer os nossos próprios conflitos, as nossas incoerências. Vivemos constantemente em lutas internas, em conflitos angustiantes, mas fazemos todo o esforço para não reconhecer ou demonstrá-los. Acreditamos que mudar de ideia é sinal de fraqueza, ser incoerente é amostra de insanidade. Tentamos nos livrar, internamente, de uma posição contraditória a abafando com racionalizações e justificativas. Afinal de contas, temos essa imagem de que o ser humano ideal é equilibrado, decidido, tem clareza sobre o que pensa e o que quer. Quando estamos numa posição de indecisão, de não saber, parece que precisamos resolver isso o mais rápido possível.
Quando reconhecemos que esse ideal é algo cultural e relativo, temos a opção de deixar de lado essa farsa. Ao enxergar que os nossos conflitos, nossas incoerências e nossas atitudes irracionais são parte da nossa natureza, ganhamos um pouco de paz. Se pararmos de lutar tanto contra nós mesmos e abandonarmos a luta para tentar mostrar para os outros que somos algo que não somos, também paramos de alimentar essa concepção comum de que esse é o jeito certo de ser. Ao se desprender dessa cultura do ideal, você possibilita que os outros também o façam.
Referência Germer, C. K., Siegel, R. D., & Fulton, P. R. (2005). Mindfulness and psychotherapy. New York: The Guilford Press.
Enquanto as pessoas seguirem regras impraticáveis—não importa se essas regras são promovidas pela cultura—suas estratégias para lidar com as situações falharão e elas permanecerão angustiadas. O objetivo [da terapia] nesses casos é identificar as regras que as pessoas estão seguindo e as consequências impraticáveis às quais elas levam. Isso pode se aplicar tanto a uma pessoa sem histórico de problemas de saúde mental que atravessa um divórcio bebendo para amenizar a dor como a alguém que sofreu abuso sexual na infância e tem um padrão de uso de drogas há dez anos. Nenhuma dessas pessoas está “quebrada”, no sentido de precisar de anos de terapia para corrigir algum problema de personalidade. Ambos estão buscando o mesmo objetivo: controlar emoções, pensamentos e memórias dolorosas usando estratégias que acabam causando mais dor. Kirk Strosahl
Uma das vantagens da linguagem é poder formular regras. Podemos criar frases que descrevem os padrões que observamos no mundo: “se eu comer demais, engordarei”, “se eu passar no sinal vermelho, serei multado”. Isso é bastante útil, pois assim podemos agir de forma a produzir os resultados que queremos, ou evitar situações desagradáveis. Além disso, podemos pegar regras emprestadas de outras pessoas, e assim saber como agir sem ter que ter passado por aquela situação. Uma amiga pode dizer: “vá na loja tal, que está com uma liquidação fantástica” ou “não coma no restaurante x, a comida lá é muito ruim”.
As regras, no entanto, também podem ter um impacto bastante negativo nas nossas vidas. Podemos criar ou utilizar regras que não são muito precisas ou necessariamente verdadeiras, como “paulistanos são arrogantes”, “homens sempre traem” e agir de acordo com elas, em vez de entendermos que a realidade é muito mais complexa do que essas generalizações. Formulamos regras que podem limitar o nosso próprio bem estar, ao estabelecer um enquadre rígido sobre a vida: “só serei feliz quando ganhar bastante dinheiro”, ou “não posso suportar nenhum tipo de sofrimento”. Muitas vezes, elaboramos regras a partir da nossa própria vivência. Uma criança que sofreu abuso pode criar a regra: “outras pessoas são perigosas”, ou “ninguém é confiável” e permanecer com essa crença a vida toda.
Como as regras muitas vezes são bastante úteis, as empregamos de forma indiscriminada e sem questionamentos ou atualização. Uma regra válida para uma determinada fase da sua vida pode não valer para outra. Uma estabelecida em um ambiente de trabalho pode não se aplicar em outro. Mas como elas um dia funcionaram, tendemos a nos prender a elas. Quando elas não dão mais certo, não percebemos que o problema é a regra e a nossa rigidez: em vez disso, achamos que tem algo errado com o mundo.
Por conta disso, é importante tentar perceber quais são as regras que estão por trás das suas atitudes. Elas são realistas? São úteis? Correspondem ao que a sua vida é no momento? Ou elas são engessadas, desatualizadas e te impedem de se adaptar melhor às mudanças da vida? Questionar as próprias concepções, perceber o quanto nossa percepção do mundo pode ser errada e cultivar a flexibilidade são aspectos importantes para uma vida melhor.