Precisamos sair do armário

Durante meus quase 20 anos fazendo atendimento psicológico, pude acompanhar diversos pacientes homossexuais em seus processos de assumirem-se perante a si mesmos, família, amigos e comunidade. Embora possa ser dolorido, esse movimento é bastante libertador e nunca vi ninguém que tenha se arrependido. Viver sob uma máscara, muitas vezes fazendo o que não se deseja por medo de perder amigos e família tem um custo muito alto. Deixá-lo para trás é como quebrar as correntes que nos privam da liberdade.

Ao longo do tempo, no entanto, comecei a perceber que viver ‘dentro do armário’ não é exclusividade de pessoas com orientação sexual que não a hetero. É algo que acontece com todos nós, em relação aos nossos atributos que acreditamos serem vistos como negativos, mas que fazem parte de quem somos.

Entre os ‘armários’ que encontrei estão as mais variadas características que, por um motivo ou outro, nos levam a querer escondê-las, mudá-las ou eliminá-las. Mas, como descobrimos nessas tentativas, a maior parte delas não são algo que podemos descartar, e acabamos precisando aprender a conviver com elas. Alguns dos aspectos que traziam sofrimento, na visão da pessoa: riqueza, pobreza, beleza, feiura, alto peso, baixo peso, preguiça, obstinação, família desestruturada, culpa, tendência a escolher relacionamentos ruins, sofrer abuso, cometer abuso, nível intelectual elevado, nível intelectual rebaixado, opiniões políticas. Ou seja, qualquer coisa que pudesse ser visto como uma falha, uma imperfeição ou uma diferença. E, como os exemplos de características antagônicas mostram, praticamente qualquer coisa pode ser vista como uma falha, dependendo do ponto de vista.

Isso torna evidente que o maior obstáculo para nossa autoaceitação somos nós mesmos. Frequentemente atribuímos ao outro o julgamento que nós mesmos fazemos. Quando nos assumimos, sofremos muito menos rejeição do que imaginávamos. A principal rejeição é interna, talvez aprendida ao longo da vida ao interiorizarmos expectativas irrealistas e modelos ideais. É um exercício importante observar as próprias regras, a voz da autocrítica, os medos que nos guiam diariamente, questionando-os.

Diversos aspectos podem ser aprimorados, mas uma boa parte não pode, especialmente aquela que não são nossas escolhas — como nossa aparência ou a família em que nascemos. E aí sim temos uma escolha. Podemos passar a vida toda tentando suprimir ou esconder aquelas características ou podemos assumi-las, encarando-as como parte de quem somos e da nossa história de vida. Quem sabe, podemos até ter orgulho daquela nossa falha que, inicialmente, parecia tão vergonhosa.

Da mesma forma que é libertador para uma pessoa assumir a sua sexualidade, também pode ser uma mulher cujo corpo não esteja nos padrões ideais usar um biquíni; um rapaz não sentir culpado por ter nascido numa família rica; um homem de meia idade reconhecer que seu abuso de drogas está sendo prejudicial. Isso nos permite ter a coragem para mudar o que é possível mudar e aceitar aquilo que não é possível, o que, nos dois casos, nos leva a ficar em paz com nós mesmos. Essa aceitação possibilita viver o melhor possível dentro das nossas limitações e das nossas possibilidades, que não são infinitas no absoluto, mas são imensas dentro do nosso contexto.

Às vezes brinco com as pessoas que atendo, dizendo: “meu trabalho é ajudar você a se deixar em paz”. E, sinceramente, espero dessas pessoas que elas possam perceber com leveza seus potenciais e limitações, respeitando-se e levando uma boa vida dentro delas mesmas.

Foto de Caitlin Venerussi.

O que você está esperando?

Nós geralmente acreditamos que um modo ansioso de pensar — em que antecipamos, imaginamos cenários, preparamos e planejamos — é indispensável para a ação. Achamos que se pudermos prever todas as possibilidades e desenhar cursos de ação, nos cobrarmos por condutas e soluções perfeitas, conseguiremos fazer aquilo que desejamos e finalmente transformar a nossa vida naquela que idealizamos.

Só que a ansiedade é baseada no medo. Nosso pensamento ansioso — e as ações que derivam dele — tem uma única função: evitar qualquer tipo de problema. Não queremos fracassar, falhar, fazer algo a menos do que achamos que deveríamos. Procuramos evitar qualquer possibilidade de vergonha, avaliação negativa, julgamento e risco.

Dessa forma, criamos uma série de condições para a ação: farei isso no dia em que tiver mais tempo, mais dinheiro, mais estabilidade. Em suma, tudo aquilo que nossa mente diz que significa mais segurança. “Vou agir, mas apenas quando me sentir totalmente seguro para isso.”

Como podemos agir se a base para as nossas ações é o medo? Ações significam mudança; como podemos mudar algo se estamos apegados à ideia de segurança?

O modo ansioso de pensar e funcionar não é um motor para a ação; é um obstáculo. Ele nos coloca na espera de condições perfeitas — que nunca chegam — para agir. Ou, quando a ação acontece, por conta de todos os medos, é uma ação travada, como se estivéssemos com o freio de mão puxado.

Isso não significa que a alternativa sejam as atitudes inconsequentes e impulsivas. É possível agir de forma natural, dentro do que as circunstâncias permitem, reagindo ao desenrolar das situações. Com base na vontade, no desejo, no sentido, as nossas ações podem seguir um fluxo em consonância com o que é apresentado a nós. Pode significar estar parado ou correr. Essa ação natural não força nem resiste. Sem as barreiras criadas pela mente, ela apenas flui em conjunto com todo o resto.

 

Foto por Alina Grubnyak no Unsplash.

Sobre pais e filhos — Alan Watts

Os trechos seguintes foram retirados da palestra “Uma sociedade verdadeiramente materialista”, de Alan Watts, que pode ser conferida na íntegra (em inglês) neste link.


O difícil é que a família, como instituição, não está sobrevivendo na cultura industrial. [A família] é uma instituição para uma cultura agrária. A família foi construída em volta da fazenda, em que as crianças trabalhavam na fazenda e eram criadas de acordo com os afazeres da fazenda, da oficina, da carpintaria — como se via na cultura agrária. Os japoneses têm estado entre os melhores carpinteiros do mundo — uma absoluta maravilha: saber como fazer as marcenarias mais complexas sem ao menos usar um modelo, fazendo pela intuição, a olho. Para treinar uma pessoa a fazer esse tipo de carpintaria, ela tem que começar aos sete anos de idade. Mas do jeito que as coisas são agora — com o Japão tendo se tornado uma cultura industrial — você não pode educar seu filho como carpinteiro, você tem que mandá-lo para a escola, onde ele vai aprender a como ser um vendedor de seguros.

A família como instituição não se sustenta mais, porque os pais e mães de família têm que sair e trabalhar em algo que não tem nenhuma relação com a vida em família. Quando eles voltam para casa, não são realmente companheiros de seus filhos porque as crianças apenas encontrariam uma real relação com seus pais trabalhando junto com eles.

E assim, conforme todo o processo educacional prossegue, as crianças são educadas para a irrealidade, para o não ser. Elas são progressivamente enganadas. É isso o que fazemos: mandamos uma criança para o jardim de infância e a alfabetizamos, mais ou menos. E a ideia é a seguinte: “se você aprender isso, irá para o primeiro ano”. E, se for bem lá, irá para o segundo ano. Então sempre há algo por vir. Você atravessará, passo a passo, o processo educacional. Até que você vai para o “mundo real”. Agora você é um adulto. Se você cumprir essa meta, haverá uma meta maior. E aquela coisa no fim da linha. Todas as propagandas dizem que se você conseguir isso ou aquilo, poderá ter o tipo certo de carro, de barco, de roupas e tudo mais. O tipo certo de bebidas. E você estará lá! Finalmente, você trabalha de acordo com isso.

E lá pelos 45 anos você acaba como vice-presidente da empresa — talvez presidente — e você diz: “Ufa, cheguei. Cheguei lá! Mas me sinto meio enganado, porque me sinto como sempre me senti. Cheguei lá, mas isso não é bem o que sempre me prometeram.”

Então, você acaba sentindo que foi trapaceado. E a razão é simplesmente essa: que a educação é vista como um processo de preparação para algo que nunca aconteceu; nunca vai acontecer. Uma educação de verdade é algo totalmente diferente. Educação, no senso verdadeiro, não é preparação para a vida, é viver de fato. É participar. É a criança participando dos assuntos adultos e fazendo isso agora. É se dar conta que o objetivo do processo em que a criança está engajada não é prepará-la para o futuro, mas aproveitar o fazer hoje.

Pois o ponto é que não há porque fazer planos para o futuro, exceto para as pessoas que são capazes de viver no presente. Se você não é capaz de viver no presente, planos são inúteis, pois quando os planos se realizarem você será incapaz de aproveitar o resultado. Se não é capaz de viver no presente, não faça planos. Se você é capaz de viver no presente, então alguns planos podem ser úteis porque eles vão produzir algo que que você poderá aproveitar e participar. O ponto central do sistema educacional que tem algum valor é permitir gradativamente que a criança participe de atividades que os adultos considerem reais e importantes, e isso deveria começar bem cedo. Em vez de dizer à criança: “Vá brincar enquanto nós fazemos o que é importante”, deixe que ela participe daquilo que consideramos importante.

Isso é muito difícil no que chamamos de família centrada na criança. Veja, se você encara aquilo que você faz (sua profissão, vocação, emprego) apenas como meios para um fim — supondo que você ganha dinheiro numa empresa que produz algo sem valor, mas ganha. E, se você justifica isso dizendo que ganha o dinheiro necessário para fazer com que seus filhos tenham algo melhor do que você, está se enganando. Pois seus filhos copiarão você, e se você existe apenas para fazer com que seus filhos tenham algo a mais do que você, eles também não farão nada além de existir para que os filhos deles tenham mais do que eles têm. E eles sempre estarão frustrados.

Agora se, por outro lado, você está fazendo algo na vida em que realmente tem interesse e que você realmente gosta, e é para isso que você vive e não para seus filhos, então seus filhos captarão o seu entusiasmo e encontrarão algo na vida pelo qual viver, assim como os filhos deles. Entretanto, infelizmente estamos numa cultura — porque sempre temos um senso de culpa de que não criamos nossos filhos adequadamente — em que fazemos todo o possível, teoricamente, para o bem dos filhos. Você não deve viver pelo bem dos seus filhos. Você deve viver pelo seu próprio bem, e então seus filhos vão aprender — pelo seu exemplo — como viver.

 

Foto: Caroline Hernandez