Reaprender a viver

As memórias não são a chave para o passado, e sim, para o futuro.
Corrie ten Boom

Quando se procura uma psicoterapia, nós geralmente estamos motivados por algum tipo de dificuldade que queremos resolver ou, pelo menos, entender. Essas dificuldades podem ter os mais variados aspectos, e costumam causar sofrimento porque ocorrem no momento atual da vida da pessoa. Entretanto, em alguns casos, descobre-se, durante a terapia, que as dificuldades atuais têm relação com aspectos anteriores da história de quem procura atendimento.

Por exemplo, é possível que uma pessoa que hoje é emocionalmente instável ou impulsiva tenha tido pais muito severos ou sofrido algum tipo de abuso — físico, psicológico ou sexual — durante a infância ou adolescência. Nem sempre as pessoas têm clareza desses episódios ou, mesmo quando têm, podem não estabelecer a relação com a situação que passaram lá atrás e a forma como elas agem hoje. Dessa forma, é possível que elas se considerem simplesmente “problemáticas” sem entender bem o porquê.

Uma criança que foi muito maltratada por pais e familiares pode não ter aprendido a lidar com suas emoções, especialmente porque os pais podem não ter tido o hábito de reconhecer e validar o que a criança sentia. Quando isso acontece durante muito tempo e num nível intenso, é comum que na idade adulta a pessoa não consiga controlar a sua raiva ou seus impulsos, o que torna dificil estabelecer e manter relações interpessoais. Isso é muito comum num quadro que se dá o nome de Transtorno de Personalidade Borderline.

Um ponto muito importante da terapia, então, é falar sobre essas experiências traumáticas. Para a pessoa que está nessa situação, entender que ela não é errada, que ela não sente tudo o que sente porque quer e que é possível se compreender de uma maneira mais ampla, é extremamente terapêutico. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, apenas falar sobre o assunto não basta. Falar sobre o assunto e se compreender não é o fim do processo: é o início.

A compreensão que adquirimos sobre nós mesmos ao entender a nossa história não faz com que mudemos automaticamente a nossa forma de agir. Ela é apenas o primeiro passo de uma mudança mais profunda, que ocorre de fato no dia a dia, na experiência. Quando nos entendemos, abrimos caminho para o processo mais longo e que significa a real mudança, que é reaprender a viver. Isso significa experimentar novas atitudes, novas percepções do mundo, novas formas de interpretar aquilo que acontece conosco. Se não aproveitamos essa chance, transformamos a compreensão que acabamos de ter em uma desculpa pelas nossas atitudes — “sou assim porque meus pais me maltratavam” — o que na verdade impede a mudança, em vez de a estimular. Ficamos presos ao passado, em vez de aproveitá-lo para transformar o nosso presente.

Quando passamos a compreender a relação da nossa história e de tudo que já passamos com o que somos hoje, temos um alívio por saber que muito daquilo que somos não é a nossa escolha, e sim o melhor que pudemos fazer a partir de um certo contexto, que pode ter sido muito negativo. Por outro lado, no momento em que temos essa consciência, passamos a ser mais responsáveis por aquilo que fazemos a partir de agora. Se entendemos como o passado nos influencia no presente, temos uma oportunidade de construir um caminho novo, mais pessoal e autêntico. E é esse o verdadeiro trabalho de quem está na terapia. Falar não basta. Aquilo que se diz no consultório é apenas um ponto de partida. A terapia se concretiza mesmo na vida real, no dia a dia, quando estamos cara a cara com as nossas dificuldades.

2 Comentários

  1. Desenvolver um conhecimento sobre si mesmo é importante, mas não garante que a mudança aconteça de fato. Apesar de oferecer condições para alteração das regras do indivíduo ( e tal alteração é de extrema importância), o autoconhecimento não garante a alteração das contingências… E muitas vezes vezes são elas (contingências) que operam de fato

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