Os problemas do DSM

O DSM é um manual de classificação e diagnóstico dos transtornos mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. Atualmente ele se encontra na 5a edição, o DSM-5¹, lançado em 2013. O DSM é a referência para que os psiquiatras façam o diagnóstico dos seus pacientes, sendo muito mais utilizado do que outros manuais classificatórios, como o CID, da Organização Mundial de Saúde. Apesar do CID ainda ser bastante utilizado por ser a classificação empregada pelo SUS e pelos planos de saúde no Brasil, o DSM é considerado mais atualizado e completo pelos profissionais. Como os psicólogos não têm um manual classificatório unificado, é muito comum que eles também usem o DSM, inclusive para poderem se comunicar com psiquiatras e outros profissionais de saúde em equipes multidisciplinares.

O DSM é estruturado de forma a aplicar o modelo médico aos problemas emocionais e comportamentais. Ele consiste basicamente de uma lista de transtornos, sendo que cada um deles é constituído de uma lista de sintomas. Quando o paciente apresenta um certo número de sintomas referentes a um certo transtorno, o diagnóstico é feito.

Apesar da sua utilidade, o DSM apresenta uma série de problemas sérios que precisam ser considerados na sua utilização. O lançamento da 5a edição gerou uma série de críticas e polêmicas que trazem questionamentos à soberania do DSM como referência na área de saúde mental².

1. Financiamento da indústria farmacêutica

A psiquiatria é uma das áreas da medicina com maior investimento da indústria farmacêutica. Talvez pelo fato de ser uma especialidade médica cujo diagnóstico é preponderantemente clínico (em oposição a áreas que dependem de exames laboratoriais ou de imagem). Os diagnósticos — e as prescrições de medicamentos — são feitos a partir do simples relato do paciente. Coincidência ou não, três quartos dos especialistas que elaboraram o DSM-5 têm ligações financeiras com a indústria farmacêutica³. Apesar de que a partir dessa 5a edição a APA tenha exigido que os médicos declarem esse conflito de interesses, houve um aumento no número de classificações diagnósticas, o que na prática significa mais motivos para prescrever remédios para os pacientes.

2. Patologização

O DSM-5 inclui como novidade transtornos como o Transtorno Disfórico Pré-Menstrual, o que significa que mulheres com tensão pré-menstrual exacerbada podem ser vistas como “doentes” e, consequentemente, receber tratamento medicamentoso. Desde edições anteriores, o manual também inclui como um problema a recusa em receber tratamento médico, pelo motivo que for. Ou seja, se uma pessoa quiser exercer o direito de não realizar o tratamento de uma doença grave, ela pode ser considerada mentalmente doente. O DSM demonstra uma iniciativa que busca reduzir questões morais e sociais a problemas médicos, ditando normas de conduta em relação ao que é “normal”. Isso é especialmente alarmante se considerarmos o fato de que não existe consenso sobre o que pode ou não ser considerado normal em termos de comportamento e que os transtornos listados no DSM não apresentam marcadores biológicos como, por exemplo, uma diabetes ou um câncer. A decisão de se algo vai ser considerado ou não um transtorno é uma decisão arbitrária realizada pelos profissionais que elaboram o DSM.

3. Desconsideração do contexto de vida e da cultura

No curso de psicologia, aprendemos que, para compreender os indivíduos, precisamos ter várias perspectivas em mente: a biológica, a psicológica e a social. Na psicologia comportamental, o comportamento também é entendido a partir de uma análise que deve considerar a filogênese (características da espécie), a ontogênese (história de vida do indivíduo) e a cultura. No modelo médico, empregado no DSM, apenas a esfera individual e biológica é considerada. Os transtornos são descritos como uma lista de sintomas que o indivíduo pode ter ou não, independentemente do contexto pessoal e social. Isso leva a dois problemas. O primeiro é que, para afirmar que um comportamento não é normal sem considerar essas esferas, seria preciso encontrar justificativas biológicas para essa afirmação. No entanto, até agora os cientistas não têm obtido sucesso em associar transtornos mentais com causas fisiológicas. Mesmo hipóteses tido como verdadeiras — como a de que a depressão é um desequilíbrio químico, por exemplo — não passam de especulação4. O segundo ponto é que esse modelo coloca totalmente no indivíduo problemas que podem ter suas causas no ambiente, como um local de trabalho estressante, dificuldades familiares, relações abusivas, alto custo de vida etc. A ideia que vem se disseminando é que se a pessoa não está bem, há algo de errado com ela. Essa perspectiva é muito interessante para os profissionais de saúde, que podem lucrar com o poder de resolver os problemas dos pacientes, para a indústria farmacêutica, que vende suas pílulas milagrosas e até para aqueles que realmente provocam os problemas mentais, como empresas com poucos escrúpulos, que podem alegar que a depressão do funcionário é um problema dele, e não do ambiente de trabalho.

Como podemos ver, o DSM não é um simples manual para facilitar o diagnóstico. Ele é uma ferramenta que pode determinar o que é ou não normal, como as pessoas devem se comportar, quem tem o poder de curar e, especialmente, viabilizar a prescrição em massa de medicamentos a partir de critérios arbitrários. É importante, tanto para o profissional que lida com saúde mental como para os próprios pacientes que são classificados pelo DSM, ter um olhar extremamente crítico e enxergar que existem interesses econômicos e políticos por trás dele.

Referências

1. American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Porto Alegre: Artmed.
2. Hoffmann, S. G. (2014). Torward a cognitive-behavioral classification system for mental disorders. Behavior Therapy, 45, 576-587.
3. Cosgrove, L., & Krimsky, S. (2012). A comparison of DSM-IV and DSM-5 panel members’ financial associations with industry: A pernicious problem persists. PLoS Med, 9(3): e1001190. doi:10.1371/journal.pmed.1001190.
4. Deacon, B. J., & Baird, G. L. (2009). The chemical imbalance explanation of depression: Reducing blame at what cost? Journal of Social and Clinical Psychology, 28 (4), 415-435.

Desesperança criativa

Quando nos apegamos à esperança, ela nos rouba o momento presente. Se esperança e medo são dois lados de uma mesma moeda, da mesma forma o são a desesperança e a confiança. Se desistirmos da esperança de que a insegurança e a dor podem ser exterminados, então podemos ter a coragem de relaxar na instabilidade da nossa situação.
Pema Chodrön

Na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), há um conceito que é bastante difícil de trabalhar com os pacientes. Ele é chamado de desesperança criativa. Essa ideia é recebida com bastante resistência pois somos fortemente condicionados, inclusive culturalmente, a nos apoiarmos na esperança. Geralmente as pessoas dizem coisas do tipo: “se eu não tiver esperança, qual o sentido de continuar vivendo?”, “para que vou fazer terapia se não tiver esperança?” e outras frases na mesma linha. À primeira vista, isso faz sentido. A expectativa de que as coisas vão melhorar é o que parece nos possibilitar passar por momentos dolorosos e fazer com que ajamos para mudar a situação. Entretanto, se esse agir significa repetir os mesmos padrões que nos colocaram na situação de sofrimento, quanto mais fazemos, pior ficamos. Nesse sentido, viver em função da esperança também pode ser negativo.

A esperança nos tira do presente

Enquanto estamos vivendo baseados na esperança, nossos olhos estão sempre voltados para o futuro. Se por um lado a possibilidade de que exista um futuro melhor nos conforta, por outro causa uma boa dose de angústia. “Será que esse futuro vai chegar mesmo? Quando? Será que estou fazendo tudo que preciso para chegar lá? E se eu estiver fazendo algo errado? E se tiver perdido a única oportunidade que tinha para melhorar?” Esses são alguns dos pensamentos que temos ao olhar sempre para a frente. A incerteza nos incomoda muito, pois acreditamos que só um caminho é o bom. Ao rejeitar e temer todas as outras possibilidades, sofremos muito. E, como estamos sempre olhando para a frente, mesmo que o tal futuro chegue, continuaremos olhando ainda mais adiante, numa insatisfação sem fim.

A esperança nós dá a ideia de que não somos bons o suficiente

Muitas vezes a esperança surge no seguinte modelo: “se eu for melhor nisso, se eu resolver esse meu problema, tudo vai dar certo”. Ou seja, se eu for mais magro, mais rico, mais inteligente, mais qualificado, mais experiente, minha vida vai se resolver. A mensagem implícita nesse tipo de perspectiva é a de que eu não sou bom hoje, não sou bom da forma como sou. E, da mesma forma que olhar sempre para a frente nos impossibilita de viver o presente, se estou sempre insatisfeito com o que sou agora, não importa o quanto eu mude, continuarei sempre precisando de mais.

A esperança reduz nossa flexibilidade

A esperança é um desejo de que as coisas aconteçam de uma determinada maneira. A vida, no entanto, é uma infinidade de possibilidades. Quando esperamos, negamos qualquer possibilidade que não seja aquela que desejamos. Ao fazer isso, sabendo o quanto a vida é imprevisível e surpreendente, estamos nos condenando ao sofrimento. Se rejeitamos tudo aquilo que não é o que queremos, assumindo uma postura de rigidez e prepotência, estamos negando os presentes da vida e nos condenando à infelicidade.

Enquanto ainda temos esperança, tendemos a continuar tentando resolver os nossos problemas da mesma forma que sempre fizemos: imaginar uma situação ideal, estabelecer o que precisa ser feito para chegar nela e agir conforme esse plano. Mas isso é o que fizemos a vida toda, e não funciona. Nós nunca chegamos nesse ponto em que olhamos em volta e dizemos para nós mesmos: “ah, agora sim, estou onde eu queria, posso relaxar e aproveitar a vida”. Quando a nossa esperança de que podemos viver sem dor finalmente acaba e chegamos no ponto em que nos parece o fundo do poço, aí sim, finalmente podemos de fato mudar. Pois só aí, quando sentimos que não há nada a perder, nada mais a nos agarrar, podemos fazer o que nunca tivemos coragem de fazer antes. Por isso o conceito se chama desesperança criativa. A coragem para criar, para fazer diferente, só pode surgir quando abandonamos os nossos vícios de comportamento. A desesperança pode ser incrivelmente libertadora e, por mais paradoxal que isso possa parecer, ela pode ser justamente o que falta para nos direcionar a uma vida muito mais plena.

Autoestima

Porque [o mestre] acredita em si mesmo,
ele não tenta convencer os outros.
Porque está contente consigo mesmo,
ele não precisa da aprovação dos outros.
Porque ele aceita a si mesmo,
o mundo inteiro o aceita.
Lao Tsé

Existe uma série de conceitos no nosso mundo contemporâneo que são sempre vistos de forma positiva, sem questionamentos. Por exemplo, temos a ideia de que crescimento econômico, sucesso, riqueza e poder são sempre desejáveis, sem considerar os custos e os problemas na sua obtenção e manutenção. São aspectos naturalmente buscados por pessoas ou países, que ignoram ou negligenciam seu lado negativo. Dentro da psicologia, e em especial na psicologia clínica, também existem conceitos que são sempre encarados como desejáveis e positivos. Entre eles, destaca-se o da autoestima.

A autoestima é definida como a avaliação positiva que fazemos de nós mesmos. Sendo assim, uma alta autoestima significa que nos avaliamos positivamente com frequência, enquanto que uma baixa autoestima significa que nos avaliamos positivamente raramente ou nunca. Parece, então, natural que queiramos ter uma autoestima alta. E essa é uma das queixas mais frequentes no consultório. “Quero melhorar minha autoestima” ou “meu problema é que minha autoestima é muito baixa” são frases que ouvimos com frequência das pessoas que atendemos.

Isso coloca o terapeuta numa situação delicada. Sabendo que a autoestima é um conceito, é algo que tem a ver com aquilo que dizemos para nós mesmos, como “eu sou bom nisso”, “eu faço isso bem”, “eu sou uma boa pessoa” e coisas do tipo, como levar a pessoa atendida a essa mudança? Uma saída rápida e tentadora é fazer com que a pessoa passe a dizer esse tipo de frase para si mesma. E esse método de fato já foi muito empregado por psicólogos que acreditavam que se as pessoas se convencessem de que elas são boas, seriam mais felizes. Mas isso não funciona, especialmente porque se a pessoa se considera boa mas isso não se reflete na sua vida, ela acreditará que existe algo de errado e injusto com o mundo ou com os outros. Ela poderá se tornar arrogante, com baixa tolerância à frustração e desconectada de seus pares. Aliás, é isso que acontece com toda uma geração de crianças e adolescentes que talvez tenham acreditado que são melhores do que os outros e merecedores de facilidades e vantagens.

Podemos perceber, então, que ter uma alta autoestima, especialmente quando injustificada, é um problema. Existem estudos que mostram que uma autoestima exagerada está associada com narcisismo, autoimagem irrealista e inflada, agressividade e bullying(1).

Acredito que o problema do conceito de autoestima está relacionado ao fato de envolver avaliação e julgamento. É muito complicado julgar pessoas — incluindo nós mesmos — porque ninguém pode ser resumido em um rótulo. Suponha que você se considere tímido, ou tímida. Você é sempre assim, ou só em algumas situações, com algumas pessoas? Você age de maneira tímida 100% do tempo? Se não, então o rótulo não é adequado. Percebe como uma palavra é muito restrita para classificar alguém? Quando buscamos uma avaliação positiva de nós mesmos, ficamos preso nessa autoavaliação constante que provavelmente trará mais angústia do que satisfação, além de nos afastar da experiência do momento.

Kristin D. Neff(1) propõe que a busca por autoestima seja substituída pelo cultivo da autocompaixão, que, segundo ela, levam a um funcionamento mais saudável e maior satisfação com a vida. A autocompaixão estaria associada com menor comparação social, constrangimento em público, ruminação, raiva e rigidez cognitiva. A autocompaixão envolve ser compreensivo e bondoso consigo mesmo, especialmente em situações em que falhamos ou nos sentimos inadequados. A partir daí, podemos ajudar a nós mesmos com o que é necessário, sem nos julgar ou nos mortificar.

O que pensamos sobre nós mesmos ou sobre nossas vidas não pode ser mais importante do que aquilo que de fato somos e o que a nossa vida de fato é. Tentar mudar os conceitos sem mudar a realidade que os geram é inútil. Portanto, levar uma vida significativa, condizente com nossos valores trará naturalmente uma satisfação conosco, sem depender de autoavaliações ou comparações com os outros.

Referência

  1. The Science os Self-Compassion, de Kristin D. Neff. Capítulo do livro Wisdom and Compassion in Psychotherapy, de Germer & Siegel, publicado em 2012 pela Guilford Press.